15 de mar de 20204 min

Os versos livres de Ernesto Cardenal

PALAVRAS LITERÁRIAS

Por José Messias Xavier

Morreu, em uma encalorada tarde de Manágua, Ernesto Cardenal, cinco anos antes de completar um século e vida. Era domingo, dia de missa, 1º de março de 2020, 15h06. Como padre, tornou-se um influente representante da Teologia da Libertação. Como guerrilheiro, ajudou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) a derrubar o regime de atrocidades de Anastasio "Tachito" Somoza Debayle, encerrando uma dinastia de tiranos, que dominou a Nicarágua por cinco décadas. Como poeta, criou uma escola literária de inspiração poundiana, marcada por uma narrativa inovadora e temática política, mística, humanista e americanista.

Com a queda de Somoza em 1979, integrou a Justa de Governo da FSLN no cargo de ministro da Cultura até 1987. Rompeu com o grupo marxista em 1994 e, já no século XXI, tornou-se um feroz crítico de seu antigo aliado Daniel Ortega, atual presidente nicaraguense, a quem acusou de ter implantado uma ditadura corrupta e violenta no país. Sua atuação política levou o Papa João Paulo II a suspender seu sacerdócio em 1985, 20 anos após sua ordenação. Em fevereiro do ano passado, contudo, o Papa Francisco retirou todas as sanções canônicas e o reintegrou à Igreja Católica Romana.

No campo literário, Cardenal é considerado um dos grandes nomes da poesia da América Latina, equiparado ao chileno Pablo Neruda. Detentor de vários prêmios internacionais, foi agraciado com o Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, em 2012, com a Legião de Honra da França no ano seguinte e, em 2014, recebeu o Theodor-Wanner, do Institut für Auslandsbeziehungen de Stuttgart (Alemanha). Concorreu ao Nobel de Literatura em 2005, mas, naquele ano, a Academia optou pelo dramaturgo inglês Harold Pinter.

Ernesto Cardenal adotou o verso livre para expandir seus poemas em uma narrativa próxima à crônica. Há curiosamente fortes traços do Imagismo neles, principalmente na exploração da linguagem coloquial e na imposição de um ritmo para obter determinada sonoridade, associada à justaposição de elementos concretos para atingir uma abstração. Um exemplo, em tradução de Thiago de Mello: “Nele estão concentrados/a beleza de todas as mulheres/e o sabor de todas as frutas/e a embriaguez de todos os vinhos/e a doçura e a amargura de todos/os amores da terra,/e provar uma gota de Deus/é ficar louco para sempre”.

O poeta, em uma autoanálise durante entrevista para o jornal El País, se definiu como o fundador de um novo estilo, a “poesia científica”. “Acredito que sou o único poeta, ou pelo menos o único que eu conheço, que está fazendo poesia sobre a ciência, poesia científica. Para mim é quase como uma oração ler livros científicos. Vejo neles o que alguns disseram ser rastros da criação de Deus”, disse ele.

O governo que ele combatia, de Daniel Ortega, decretou três dias de luto e emitiu nota oficial, chamando-o de “glória e orgulho” da Nicarágua. Pura hipocrisia. Para o mundo, os versos de Cardenal continuarão a soar como um manto protetor contra a opressão e a miséria dos povos. Sua imagem, saboreando um nacatamal em uma tarde de domingo em Manágua, às margens do lago onde, antes dos brancos, os náuatles pescavam e entoavam canções para outros deuses, será eterna.

SEM POESIA NÃO DÁ

Para os que virão

Thiago de Mello

Como sei pouco, e sou pouco,

faço o pouco que me cabe

me dando inteiro.

Sabendo que não vou ver

o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente

para não enganar a ninguém:

principalmente aos que sofrem

na própria vida, a garra

da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido

no meu bolso de palavras.

Sou simplesmente um homem

para quem já a primeira

e desolada pessoa

do singular – foi deixando,

devagar, sofridamente

de ser, para transformar-se

— muito mais sofridamente —

na primeira e profunda pessoa

do plural.

Não importa que doa: é tempo

de avançar de mão dada

com quem vai no mesmo rumo,

mesmo que longe ainda esteja

de aprender a conjugar

o verbo amar.

É tempo sobretudo

de deixar de ser apenas

a solitária vanguarda

de nós mesmos.

Se trata de ir ao encontro.

(Dura no peito, arde a límpida

verdade dos nossos erros)

Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,

e saber serão, lutando.

Thiago de Mello é um poeta, romancista, dramaturgo e tradutor brasileiro. É um dos poetas mais influentes e respeitados no país, reconhecido como um ícone da literatura regional. Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Preso durante a ditadura militar, exilou-se no Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e colaborador.

Esperemos

Pablo Neruda

Há outros dias que não têm chegado ainda,

que estão fazendo-se

como o pão ou as cadeiras ou o produto

das farmácias ou das oficinas

- há fábricas de dias que virão -

existem artesãos da alma

que levantam e pesam e preparam

certos dias amargos ou preciosos

que de repente chegam à porta

para premiar-nos

com uma laranja

ou assassinar-nos de imediato.

Pablo Neruda, nascido Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto (Parral, 12 de julho de 1904 — Santiago, 23 de setembro de 1973), foi um poeta chileno, considerado um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha (1934 — 1938) e no México. Recebeu o Nobel de Literatura em 1971, enquanto ocupava o cargo de embaixador na França, nomeado pelo então presidente chileno Salvador Allende.