A gourmetização das faixas e o esvaziamento das lutas
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A gourmetização das faixas e o esvaziamento das lutas

Atualizado: 21 de jul. de 2020

Ricardo Pinto


Foto: Agência Estado.

Não assisto a jogos de futebol desde a Copa no Brasil. Era visível o que se colocava naquele momento. Desvios, exageros, má gestão foram alguns dos pontos que, entre tantos, pautaram a minha escolha. Foi assim e seguirá desse modo até que eu me sinta confortável entregando meu tempo e dinheiro para instituições (CBF e FIFA) que representam todos esses valores deturpados que listei. Afinal, entre o meu amor pelo futebol e os meus limites éticos, fiquei com o segundo.


Mas essa história não para por aí. Desde os meus primeiros anos de pesquisa sobre o racismo no esporte, em especial no futebol, sou crítico aos limites do que insistem em chamar de luta contra o racismo no futebol e os seus apetrechos gourmetizados de pura exibição. Nesse contexto, ontem, tive prova irrefutável desses limites e, também, da alta dose de cinismo que as instituições esportivas, através dos seus discursos, utilizam para seguirem, todos, o mesmo caminho. Vejamos:


Assisti durante uma reportagem jornalística que Fluminense e Botafogo entraram em campo com uma FAIXA pedindo respeito a  história dos seus clubes. Não sabendo do que se tratava, fui pesquisar e descobri que era um posicionamento em que ambos os clubes tomaram contra o retorno do campeonato carioca. Sobre isso, acredito que não haveria outra posição se não essa. Amparados pela ciência, o bom senso e, sobretudo, por uma alta dose de solidariedade, não há sentido jogar futebol em tempos de pandemia em ascensão.


Porém, mais uma vez, a tal FAIXA estava lá, em campo, e exigia, dessa vez, respeito a história do clube. Assim como no combate ao racismo, a faixa passou a representar elemento de luta para os clubes de futebol. Ainda que seja visível os limites de alcance e, sobretudo, da sua efetividade no conflito, ela se tornou um elemento estético, e só isso, nas “lutas” que os clubes assumem.


Em geral, e o que mais me incomoda, é que essa luta se esgota na faixa, como no caso do racismo, ou, em tempos de espetacularização do mundo, ela passa a dizer muito mais sobre o desejamos parecer do que o que realmente somos ou fazemos. Ou seja, pareço um rebelde, mais sigo passos idênticos daqueles que desafio. Afinal, apesar da faixa e todo o discurso anti-carioca, a bola rolou e tudo o que isso representa em tempos tão sombrios estava lá.


Verifiquei, durante a pesquisa, que havia uma nota conjunta dos dois clubes, datada de sábado, em que ambos mantinham a posição contrária a realização da partida. Fui ler. E, como num cardápio de restaurante chique, me perguntei sobre o que efetivamente estava ali, para além de um exercício retórico de autoelogio e esforço em criar uma representação positiva ainda que, ao fim e ao cabo, fossem seguir jogando (obrigados ou não). Enfim, faixas pra cá, notas para lá, mas a partida seria/foi realizada.


A nota, para além dos seus limites históricos e analíticos, aparece como uma manifestação bipolar frente ao fato concreto. Sim, isso mesmo, afinal, os mesmos clubes que escrevem que “Todos os brasileiros sabem que nossa construção como nação passa pelo futebol, que tem uma responsabilidade social enorme por ser forte fator de influência sobre atitudes e comportamentos da população. O futebol, em sua essência, traz o espírito de solidariedade, a empatia e o respeito ao adversário, sem o qual não há jogo possível. Sem o qual não há ludicidade e, a partir daí, a vida perde um pouco de seu sentido.” são os mesmo que foram a campo e realizaram a partida.


Pior, segue a nota: “Honrados em mantermos nossa posição e nossos princípios é que protestamos contra o que se está vendo do atual cenário do futebol do Rio de Janeiro. Uma cena triste cujo pano de fundo é este momento tão difícil da história nacional, quando vidas estão sendo ceifadas não apenas pela pandemia, mas também a golpes de insensatez e de falta de empatia. O que todos estão assistindo em primeiro plano nesse show de horrores é o espetáculo de desmandos e desrespeito com que os clubes e seus torcedores vêm sendo tratados.” Ou seja, mesmo sabedores de tudo isso, os clubes entraram em campo e jogaram a partida de futebol.


A nota segue apresentando pontos em que os clubes mostram a sua luta, injustiças de que foram alvos e, principalmente, o constrangimento de se verem “obrigados” a retomar o campeonato carioca. Apesar de já terem sofrido com tudo o que foi descrito, os clubes realizaram a partida de futebol. No fim, o que fica é que o show não pode parar.


Enfim, ao fim e ao cabo, nada mudou. O alcance efetivo de tudo isso, faixa, nota e todas as duras críticas jogadas ao vento, já era previsível. Na verdade, quando falamos de futebol, salvo o que ocorre dentro das quatro linhas (às vezes, nem isso), me parece que sempre sabemos o final da história. A contar por tudo que já foi produzido sobre o esporte, aprendemos, nós historiadores, que a história é, sempre, uma disputa de discurso constante numa guerra sem fim por um lugar de destaque na história do esporte. Talvez, quem sabe, assim como a carta de 1923, que nos apresentou a luta mais rápida e limitada contra o racismo da história, Botafogo e Fluminense, daqui a um século, recuperem essa carta e bradem que lutaram bravamente contra uma pandemia. Do mesmo modo, torcedores que tanto apoiaram e se orgulharam dessa “tal” luta, mas que, ao final, comemoram o título.


Ricardo Pinto é Doutor em História Comparada pela UFRJ e pesquisador do Laboratório de História do Esporte e do Lazer (Sport/UFRJ).


Texto publicado originalmente no Blog História(s) do Sport:

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