Entre sol e nuvens de Brasília
Brasília, 24 de maio de 2017.
Sol entre nuvens. De chumbo. Me mandaram vir de tênis, porque a caminhada do Mané Garrincha até a esplanada dos Ministérios levaria uns bons 2 ou 3 km, sob o sol seco da cidade-sonho de Kubitschek. Eu confesso que viria até de pantufas, se isso me fizesse sentir mais confortável. Mas não foi assim. Não era pra ser.
Subi ao 11.o andar do hotel em que me hospedei pra deixar a mala e tive a real dimensão da massa multicolorida que vinha marchando atrás de mim. Fiz de lá de cima as primeiras fotos do #ocupabrasilia. Não intuía àquele momento que seriam as únicas. Desci ainda a tempo de pegar o fluxo com a galera da Andes. Eram 10 pras duas da tarde. Sol entre nuvens. Coração na boca.
Segui mais observando do que marchando. Sim, eu estava no coração do Brasil e não sabia se andava pela rua ou na calçada (minha grande questão existencial desde as procissões da semana santa, na minha pequena Cantagalo). A marcha foi se avolumando, passou pela ponte da rodoviária e seguiu. Para onde, meu deus, para onde. Vez por outra, uma parelha de PMs de moto cruzava as esquinas, alinhando a turba. Eles vinham de braços abertos, com seus capacetes que não nos deixavam divisar seus rostos, mas a gente sabia que eles riam. Riam de nós? Riam de que, meu deus pequenino?...
Dali em diante, o sol entre nuvens no céu de chumbo parou de sorrir. Antes mesmo que a marcha (pelo menos a da sessão em que eu estava) apontasse na esplanada, começamos a sentir no ar o revés. Barulho de bombas, gás, tiros de bala de borracha. Éramos mulheres, trabalhadores, velhos, crianças (algumas poucas), jovens estudantes (muitos, muitos). Gente, muita gente. Havia cores, havia o vermelho, havia o amarelo, havia camisetas brancas de todas as cores e pleitos. E havia o chumbo do céu e o chumbo das ferraduras dos cavalos da cavalaria da PM. Que cavalos? Eles eram muitos cavalos. E arremeteram contra as cores, as mulheres, os trabalhadores, os velhos, as crianças e os jovens.
Minha mão formigou. Paralisou. Não consegui mais fotografar. Tive muito medo. Tentei recuar. Não sei se foram as motos em parelhas ou o casco dos cavalos que vinham, e não estavam longe. Foram nos espremendo, nos diminuindo. A sensação de secura na boca, a sensação de falta de espaço, a sensação de impotência imensamente espaçosa. Companheiros voltavam do front com olhos vermelhos e pó branco no rosto, à maneira dos clowns, e nos davam conta de que a polícia usava, sim, armas letais. Falavam também dos filhos da puta infiltrados que começaram a virar banheiros químicos e queimar tudo. Ouvíamos apelos dos carros de som: “Polícia, não ataque o povo!” Tinha muita gente pobre. Tinha muito povo, não só funcionário público de carreira. Tinha muita gente chão. O sol entre nuvens e o chumbo contra o chão.
O ato terminou mais cedo do que o previsto. Mas era um espanto para mim ver a cabeça erguida daquela gente muito gente. Voltamos ao ponto de partida, caminhando ao contrário, já sem fumaça e sem patada de cavalos. E eu vi que havia um sentido nesse caminhar ao contrário. Caminhar contra o cerco. O gingado, o drible do Mané. O sol, lá pras 16h, saiu de dentro das nuvens e brilhou, sem ingenuidade. Os que voltavam estavam ainda coloridos. Os olhos eram coloridos, mais do que as camisetas.
Anabelle Loivos é escritora e professora da UFRJ
Foto: José Cruz/Agência Brasil