Em Imbuhy, falhou o Brasil
Há exatos dois anos atrás houve o despejo dos moradores da Aldeia do Imbuhy, em Jurujuba. Passei aquele dia com eles, foi amargo, e ao chegar em casa escrevi um relato das sensações e da minha convivência com esse pessoal de luta. Há poucos dias atrás saiu nova decisão judicial, dessa vez cassando a Lei de Tombamento que eu havia conseguido aprovar na Câmara para aumentar a defesa da comunidade tradicional. Como toda luta por moradia também é uma luta por memória, cotidiana, resolvi replicar o texto de dois anos atrás:
Estive, desde os anos 2000, muito imerso na defesa do direito à permanência dos moradores da mais que centenária Aldeia do Imbuhy. Hoje foi um dia muito importante e triste, onde tive a experiência de ver pessoas perdendo suas casas sem nenhuma flexibilidade, sem mediação ou acordo - e a isto chamou-se de justiça.
Essas pessoas foram jogadas no olho da rua, com objetiva desconsideração à antiguidade e tradição de sua estadia naquele lugar. Sem direito a nada. É isso mesmo que você esta lendo. É flagrantemente errado assim - e foi o que aconteceu nesse dia triste. Quero contar a vocês como me sinto.
Em uma espécie de "lavar de mãos e consciência", uma espécie de apagão de qualquer valor de solidariedade entre seres humanos, pessoas foram despejadas sem indenização ou moradia digna alternativa. Após judicialização, assim decidiu-se o Brasil por expulsar e demolir - sem direito a coisa nenhuma, jogando no olho da rua - e dizendo que o problema é de quem só queria continuar morando, alguns após gerações consecutivas.
Não é possível que não nos compreendam até mesmo os personagens do exército, no quanto estamos indignados e tristes. Constam entre nossos argumentos e neles está depositada toda nossa paixão e razão, que os moradores como um todo estavam ali antes do forte; que houve um acordo, registrado em ata, que garantia aos moradores permanecerem até receberem no mínimo chaves de suas novas casas e que este acordo assinado, não podendo ser cumprido, deveria - moralmente - ser substituído, jamais unilateralmente descartado.
Mesmo entre adversários momentâneos deve haver respeito - e abandonou-se unilateralmente a possibilidade de mediação, passando o exército, na prática, a não importar-se com o destino das famílias ao fim do procedimento de despejo que ele mesmo está executando. Essa crítica é dura e está no centro da minha decepção com a posição do nosso exército. Mudou de ideia - assinou e esqueceu.
Entre outros tantos argumentos acrescente-se que há entre eles famílias que descendem da mulher que bordou a primeira bandeira brasileira - para nós e para eles isso é motivo de orgulho. São pescadores tradicionais, idosos e há gente pobre. O manejo generalizante está injustiçando ainda mais as pessoas mais frágeis. Ignorar isso segue sendo insensibilidade, e não querem ver.
Se nos colocarmos em seus lugares, por um momento, que experiência devem estar tendo os que entre eles são idosos e que estão ali por uma vida inteira - ou ainda outros tantos que tinham ali antepassados? Ser despejado, demolido e expulso - e o problema ´é todo seu´.
Nossas instituições envolvidas - a minha também - fracassaram miseravelmente. O desfecho parcial poderia ter sido melhor; mais humano, generoso - com menos desgaste e tristeza. Falhou o Brasil no Imbuhy
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Há toda sorte de atividades recreativas e festivas acontecendo ali dentro, e no fundo não cabe falar em segurança nacional se formos ser realmente intelectualmente honestos. Guardadas as regras as quais sempre estiveram dispostos a aderir, poderiam ali morar sim, poderiam conviver em harmonia - pois inclusive essa tem sido sua tradição mansa, por mais de século.
Acho totalmente compreensível essa tristeza e nó na garganta que sinto. E quero aproveitar para deixar claro que as Forças Armadas são instituição respeitável e muito importante - em qualquer país e também no nosso. Merecem toda honra e respeito; não é sobre achincalhar nosso exército, não tenho esse objetivo. Mas é que a meu ver, de tudo quanto participei e ouvi nesses anos de convivência com os moradores em luta; vi neles a pátria. E hoje via o exército do lado errado, assim percebi, assim vivi: o exército expulsando e demolindo o povo da pátria. Foi como senti no meu coração, que doía apertado diante do pranto de quem perdia o rumo.
Apesar de toda devida gentileza - que aliás o exército não nos dispensou ao impedir que nós parlamentares e os advogados acompanhassem seu mando - a instituição que via não se importava com o destino final daqueles seres e nem com acordos, nem com palavras empenhadas que havia dado em papéis do passado.
Estavam preocupados em controlar crise e lidar com imagem, esforço pensado antecipadamente - entre copos d´água e enrolações que negavam os pedidos realmente importantes. Procurando conter crise de imagem, desviaram-se do verdadeiro esforço nobre - que teria sido, simplesmente, uma solução justa pensando nas pessoas.
Mesmo nesse momento de descompasso e tristeza, acho que até eles conseguiriam nos entender - só não creio que consigam inflexionar ou praticar qualquer extensão de apoio a essas pessoas que não seja sua condução à porta da rua. Nós seguimos procurando todos, tentando variadas ações - porque a luta deles continua e a grande maior parte das famílias ainda está lá.
Os moradores contarão com total apoio na Câmara da orgulhosa cidade de Niterói, que foi desprezada hoje duas vezes - ao ter seus cinco vereadores presentes barrados negando-lhes mera audiência e por rasgar a lei municipal de tombamento da aldeia ao ir além e praticar demolições, mesmo conhecendo o texto. São as etapas evitáveis - e lastimáveis - dentro do erro pior que é a ação de despejo com essa posição endurecida.
Inflexíveis, seguem a nosso ver, na prática, praticando um ato malvado contra essas famílias - e qualquer um pode ver isso claramente. Poderiam resolver o conflito através da mediação - e já tinham concordado no passado a isso. Esta inflexão de posição é realmente mal explicada pelo exército. O que mudou? Porque deixou de ser correto e importante ter um local para acolher estas pessoas? Será que os pilares morais desse acordo perderam o efeito? Difícil.
Outra pergunta que agora nos cabe fazer: por que o interesse a esse ponto de desgaste público pela área? Não há nenhum documento, é justo dizer, mas está na ponta da língua a explicação que moradores dão ao seu algoz: um resort.
A essa altura, e já ha algum tempo, pela evolução da apreensão com o caso, parei de fazer segredo até dos boatos - que fazem muito sentido pra quem olha de fora. Dar voz ao que eles dizem agora é muito importante.
Que cada um possa se colocar no lugar por um momento de um idoso morador que está sendo despejado - sem lhe ser dada outra casa, aluguel social ou indenização - na expectativa de que acontecerá um resort. É de tremer.
Há muita esperança e luta pela frente; nós vamos seguir ao lado deles, como fazemos há tantos e tantos anos - e faremos sempre. Precisamos do apoio de Niterói, precisamos que esta se torne uma causa de toda a cidade - e temos certeza de que, mais uma vez, ela acolherá e estará conosco.