Especialista condena o abate
A radicalização da política de combate à criminalidade no Rio de Janeiro viveu seus piores dias, em 1987, sob a promessa do governador Moreira Franco de “acabar com a violência em seis meses”. A experiência sinistra ameaça voltar com o governador eleito Wilson Witzel (PSC). Witzel quer a polícia do estado atirando em todo e qualquer potencial criminoso que esteja portando um fuzil. “O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro”, disse. Mas a nova política de “mirar na cabecinha” não encontra eco entre cabeças lúcidas em um estado historicamente de vanguarda. A professora Jacqueline Muniz, da UFF, uma das maiores especialistas do país na área de segurança pública, vê com preocupação essa política, com riscos para a integridade da população e também do policial. Em entrevista exclusiva ao TODA PALAVRA, Jacqueline Muniz também analisa o fim da intervenção federal, que começou com muita propaganda e chega ao final sem apresentar sequer um plano de segurança.
Toda Palavra: No último dia do ano, chega ao fim a intervenção federal na área de segurança pública no Rio de Janeiro com uso das Forças Armadas. Que avaliação é possível se fazer sobre essa nova ocupação sem cumprir aparentemente, ao menos, o objetivo de dar sensação de segurança à população?
Jacqueline Muniz: A gente está naturalizando coisas que têm acontecido no Rio há 30 anos, e parece que é normal fazer cerco, que é normal fazer ocupação... Não, não é normal. O que produz segurança pública é uma rotina enfadonha, comum, repetitiva de policiamentos cotidianos. Operações especiais, por melhor que possam fazer, tem que ser sempre pontual no tempo e no espaço. Temos no Rio de Janeiro a ‘síndrome do cabrito’: o sobe e desce o morro, sem permanecer...
Toda Palavra: A ausência do Estado nas comunidades...
Jacqueline Muniz: O fato é que governos com baixa popularidade e pouca legitimidade fazem uso das Forças Armadas como modo de substituir a ausência de adesão por uma coerção diante do medo. Uma coerção da sociedade diante do medo. O cidadão, amedrontado, deixa de prestar atenção na perda de outros direitos porque ele está refém do medo, exposto ao risco deliberado, o risco de vida. Isso é histórico e é cíclico no Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro desde a década de 80 vive crises sucessivas de segurança pública. Normalmente crises espetaculares exigem ações espetaculares. Assusta o Brasil inteiro, mostra que o Rio não tem jeito, que as coisas não têm solução, que é só mesmo com a mão dura. Para isso é preciso fabricar, tornar mais perigoso o crime do que ele de fato é.
Toda Palavra: A intervenção começou e vai acabar sem que ninguém tenha apresentado para a sociedade até agora um plano de Segurança...
Jacqueline Muniz: Nós sabemos quanto se gasta para manter as Forças Armadas realizando uma intervenção. Estão gastando impostos. Teve propaganda nos aeroportos, mostrando as Forças Armadas desembarcando no Rio como se fosse uma passeata do 7 de Setembro, e como se essa chegada fosse alterar a realidade da insegurança. Não alterou, como eu havia dito antes, em fevereiro deste ano (Ela se refere à entrevista concedida à Globo News em 18/02/2018, quando já apontava todas as fragilidades de uma intervenção sem planejamento nem objetivos específicos). Não alterou não é porque não se possa colaborar e contribuir. É porque simplesmente não se tem um plano de ação com protocolos interagência, que se preste contas à sociedade, e que tenha início, meio e fim.
Toda Palavra: É um custo alto para um baixo resultado...
Jacqueline Muniz: O resultado é sempre pontual, provisório em relação ao custo. A manutenção das Forças Armadas custa um milhão de reais ao dia, em média. Até o final de dezembro, vão ser R$ 150 milhões ou muito mais. Só na época em que as Forças Armadas ficaram na Maré, gastou-se mais de R$ 300 milhões. (...) Não é que as Forças Armadas não possam vir em colaboração, em cooperação técnica, desenvolvendo atividades de apoio e suporte que complementam e suplementam a ação principal de polícia. Pode sim. Mas isso depende de você desenvolver um plano interagências.
Toda Palavra: O próprio comandante do Exército deu inúmeras declarações dizendo que é inadequado tecnicamente e politicamente usar as Forças Armadas numa rotina de segurança pública.
Jacqueline Muniz: Isso não se faz em lugar nenhum nas democracias. Aliás, na maior parte das democracias, os exércitos são proibidos, são vetados de atuarem em atividades domésticas, exatamente para não produzir instabilidade no exercício do governo de um determinado país, de uma determinada cidade, de um determinado estado.
Toda Palavra: O governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, tem uma proposta escabrosa para combater a criminalidade de quem estiver portando um fuzil: “A polícia vai mirar na cabecinha e... Fogo!”.
Jaqueline Muniz: A proposta do governador é ingênua e perigosa, pois tiro de abate é ilegal porque viola a doutrina profissional do uso da força. No tiro de abate quem leva vantagem é o criminoso que já está no crime praticando violência. O que os policiais do Rio de Janeiro precisam é adquirir padrão de tiro: tiro defensivo estático e dinâmico por modalidade de armamento, de maneira a garantir a sua integridade no uso do instrumento de trabalho e a integridade da população evitando 'banho de sangue', tiroteios, 'balas perdidas' e desperdício de munição. Para tanto é preciso que os policiais do Rio de Janeiro passem a ter um padrão de precisão e êxito na modalidade defensiva de tiro acima de 90% como é o caso das polícias profissionais no mundo inteiro.
Toda Palavra: Até o momento, o governador eleito não demonstra intenção de recuar no “mirar na cabecinha”.
Jacqueline Muniz: Esse tipo de ação só têm um objetivo que é fortalecer o mercado da guerra, uma vez que precisam ser adquiridos equipamentos para mostrar força e macheza sem ter reais propostas. É uma ação que possibilita compras com comissões vultosas e instrumentalização política do temor que ameaça e engana consciência dos cidadãos. Com o mesmo gasto se poderia treinar os policiais do Rio de Janeiro em tiro defensivo e estático por modalidade de armamento e garantir superioridade de método da polícia. Mas não é isso que parecem querer. Preferem pagar comissões milionárias, esquentar a chapa e transformar a morte de policiais e cidadãos em esporte local.