Ultraje à democracia, memória e verdade
Artigo de Waldeck Carneiro
Em recente artigo publicado na Folha de São Paulo, Celso Barros afirmou que Bolsonaro teria cometido "estelionato eleitoral", se, no exercício da presidência, não estivesse tentando destruir as bases da democracia brasileira. Em reflexão também recentemente divulgada nas redes sociais, Celso Amorim chama a atenção para o fato de que as atitudes e declarações grotescas, sombrias e autoritárias do presidente não são mera pirotecnia para distrair a sociedade em relação às medidas estruturantes e antinacionais que seu governo vem tomando. Concordo com ambos. Com efeito, ao longo de seus sete inexpressivos mandatos na Câmara Federal, onde figurou na retaguarda do "baixo clero", e durante a campanha presidencial de 2018, Bolsonaro sempre deu inúmeros sinais de profundo desapreço pela democracia, como salientou Barros. Afirmou que a ditadura civil-militar (1964-1985) deveria ter matado muito mais gente. Propôs a execução de um presidente da República por discordar de suas decisões. Reconheceu publicamente que tinha como ídolo um cruel torturador. Na última campanha presidencial, deixou claro que, caso perdesse as eleições, não aceitaria o resultado e, na reta final, mesmo quando liderava todas as sondagens, garantiu que, se eleito, à esquerda restaria apenas a prisão ou o exílio. Como ressaltou Amorim, por mais que a tosca verborragia e a bufona teatralidade de Bolsonaro funcionem como cortinas de fumaça para ofuscar seu projeto de subalternidade neocolonialista na economia e na política externa, de crueldade social, de desprezo aos direitos humanos e de negação da ciência, não se pode ignorar que ele também age para ferir de morte valores humanistas, altruístas e racionalistas que estruturam, hoje com muitos limites e retrocessos, a democracia brasileira. Nos últimos dias, Bolsonaro e seu governo ultrapassaram uma fronteira sensível, em duas dimensões. Na primeira, investiram contra a liberdade de imprensa e de expressão, atacando veículos, jornalistas e, em particular, Glenn Greenwald, que expôs as vísceras de um Sistema de Justiça em processo de putrefação e revelou o agora inquestionável conluio montado, sob a liderança de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, determinante para o golpe que depôs Dilma e prendeu Lula, abrindo largo corredor para o "acidente histórico" que levou Bolsonaro à presidência. Na segunda dimensão, especialmente Bolsonaro mas também seu governo ofenderam, com desrespeito e mentiras, a memória da luta pela democracia no Brasil, ao forjar nova versão para a morte de Fernando Santa Cruz, uma das inúmeras vítimas assassinadas, desaparecidas, torturadas, presas ou exiladas pelo terrorismo de Estado vigente durante a ditadura civil-militar no Brasil. Desmentido pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, órgão colegiado de Estado vinculado ao governo federal, e pelo Ministério Público Federal, Bolsonaro não se retratou. Ao contrário, já retaliou aquele colegiado, alterando sua composição. Suas atitudes ultrajantes acabaram por ofender a OAB: o atual dirigente nacional da entidade, Felipe Santa Cruz, é filho do patrono do Diretório Central dos Estudantes da UFF, herói da luta pela democracia no Brasil. O STF solicitou a Bolsonaro que esclareça suas declarações farsescas. É assim, plantando ódio, intolerância e violência, sem respeito à memória e sem compromisso com a verdade histórica, que Bolsonaro faz mais do que pirotecnia de mau gosto. Ele busca destruir a democracia, propagando aqueles elementos, incompatíveis com a experiência democrática, como se fossem valores capazes de lastrear a convivência social.
Waldeck Carneiro é professor e deputado estadual (PT)