A Desertificação da Humanidade
A gente caminhou umas mil horas naquele dia. O solo seco debaixo dos pés calçados em botas. As botas precisavam ser grossas em razão do chão ser tão quente. O ar era estranho, fazia a respiração mais difícil. Era pesado respirar no deserto. A vastidão era tão grande que confundia a vista. Você ainda se lembra? Parecia que nunca chegaríamos a lugar nenhum. Quanto mais andávamos, mais a cordilheira se distanciava ao fundo. Faz tanto tempo que não nos falamos... Nos perdemos por aí.
Dez anos e agora acho que talvez nunca tenhamos de fato nos encontrado. Fico pensando nessas coisas ultimamente. Ao mesmo tempo que suponho que as relações esfriem, ainda me causa estranheza ver alguém com quem se teve intimidade sumir na poeira. Eu, como você e a maioria das pessoas dos nossos tempos que amam trechinhos de obras, também ouvi falar em Baumann e nos famosos amores líquidos. Acontece que no meu coração esse lance de descartar as pessoas nunca colou muito bem. E independente do que tenha acontecido entre nós, não, eu nunca vou entender a distância ou o gosto amargo que ficou quando nos afastamos. A gente podia ter lutado. Ter sentado e embaralhado as cartas quantas vezes fosse necessário para desenhar um jogo em que a mesa fluísse. Podíamos ter nos xingado e ficado com raiva das nossas caras, pontuado as nossas angústias rudimentares. Expressado esses nossos incômodos. Se tivéssemos escancarado as nossas invejas e dito: “Eu te odeio por esse sorriso solto, e pela forma como você sempre deixa esses cadarços desamarrados para depois tropeçar e vir novamente com essa banguela escancarada que ri de tudo”. Mas a gente olhou para os nossos defeitos, você os meus e eu, os seus; e preferimos anotar todas as nossas discordâncias em uma nota mental que dali a pouco desembocou nesse fim.
Não pareceu um fim trágico para você. Bem como você não soube como me senti sozinha quando estendi as mãos ao invisível e não toquei a nossa conexão. Será que ver uma foto viva um do outro, aqui e ali, já seja suficiente para que lavemos as nossas mãos do cuidado? Quem sabe um alívio? Se relacionar dá trabalho, não é? Ser amigo, consertar as coisas que quebram. E como quebram! Tudo que existe, quebra. Mas não é só a gente. Isso acontece todo dia. Às vezes eu acordo mais leve que o dia anterior, e ao invés de achar que emagreci, eu penso: quem será que eu perdi hoje, apesar das novas “solicitações de amizade”? Acho que é uma maldição com as novas gerações. A facilidade de encontrar tudo novo a um clique de distância. Amigos novos, roupas novas, novos dispositivos, redes e bolhas, ideias nem tão novas assim, mas vestidas de contemporaneidade.
Sabia que também o deserto chegará ao fim? Vai virar um enorme aterro para nossos descartes.
“Que isso? Você tá louca? Sempre foi, né?!”, você diria se pudéssemos nos falar.
Sei como posso ser chata com esses papos que deixam as pessoas confusas e mesmo pensativas quando elas só querem terminar mais um dia, desvestir suas botas e beber em uma só golada algo que as faça esquecer justamente o que eu teimo em trazer à tona. Parecia uma metáfora essa coisa de visitar o deserto e ver um amigo desaparecer. Mas é verdade, sabe? Não empilhamos apenas amores, amigos vivos ou mortos e a nossa família.
“É o plástico. Vestimos plástico agora. Comemos plástico e respiramos plásticos. Alimentamos de plástico nossos filhos e os animais. Até que morram. Depois enterramos. Vidas e lixo. Ou queimamos. Vidas e lixo. Para o plástico, não há fim. Quisemos tanto a eternidade, que demos nosso jeito. Infelizmente vai sobrar apenas um robô sem vida a escavar todas essas montanhas de resíduo que estamos produzindo diariamente.
“Eu assisti a esse filme”.
“Eu sei. Todos nós vimos. Porém nunca podíamos imaginar que ao invés de estar no espaço, estaríamos na terra vendo o fim de tudo, né? Dizem que mesmo os afetos serão robotizados”
“Calma, é preciso dar um tempo àquele bilionário para estar com a nave pronta quando ele finalmente conseguir destruir o que sobrou de todo este quase nada.
“Será que já existem meta-humanos?”
“Você tem dúvida? Já passeou na Barra da Tijuca ou em Goiás nos últimos anos?” O que realmente não entendo é por que não inventaram plástica para o cérebro?”
“O cérebro?”
“Talvez estejam mais para pink. E faz sentido o pink ser amigo do laranja apesar disso não os fazer nem um pouco coloridos. No máximo um coral de picada venenosa”
As minhas palavras não fariam sentido imediato para você. Eu falava assim. Relacionava assuntos que ninguém entendia. Brincante das palavras. Foi como fiquei sozinha, eu imagino.
Agora em um tom mais brando e com um fundo de seriedade: os bebês já nascem com plástico dentro do corpo.
“Será que já nasceremos com filtros de harmonização em cem anos?”
“No mínimo com a pele lisa da Barbie”.
Eu teria adorado gargalhar com você, mas ri sozinha, pois nenhuma dessas conversas existiu. Só o silêncio do nada que nos passou. Ontem eu assistia a um documentário sobre o consumismo que vai destruir o deserto e as novas vidas enquanto brincamos de desembrulhar porcarias que não precisamos. Foi engraçado e ao mesmo tempo estranho. Como antes eu me senti tão broca. Avelhentada. Agarrada às antiguidades. Salvando os puídos de mim sem desejar me trocar. Tinha mais gente preferindo, pelo mundo e pelo deserto e pelos bebês, consertar os puídos ao invés de qualquer truque de fumaça que entulhasse corpos, amigos ou mais lixo que jamais seremos capazes de jogar fora. Não existe “fora”.
*Railane Borges é atriz e cineasta
O fim das relações humanas, em todos os níveis, sempre existiu. Porém, a forma como tudo e toda relação é descartável nestes tempos alcança um nível tão grande de indiferença e de busca por algo perfeito (que simplesmente nunca se alcança pois a perfeição é uma ilusão) de uma forma nunca antes vista. Parece que a cada dia os humanos são menos humanos por prazer e proteção, e que nenhuma vivência, nenhuma intimidade, nenhuma relação valeu ou vale de algo simplesmente pois não foi o que esperava ou não havia a vontade de crescerem juntos. Passemos para próxima e vamos empilhando histórias e momentos que queremos esquecer pelo caminho ao invés de valorizar a trajetória e a estrada. Hoje o…
Um texto que nos remete a refletir sobre as relações humanas e, nos mostrando que é necessário mais empatia, solidariedade e compreensão sobre as nossas dificuldades e as dificuldades do outro em qualquer tipo de relacionamento.
Parabéns Railane por dar luz a essa realidade.
Nossa , amei o texto ! Toca na alma !!!
Railane toca nos "desertos" que nos habitam, em cada grão-momento vivido. Reflexiva e atenta.
Encanta-se ainda as palavras escritas aqui, são de uma sobriedade que chega a tocar nossos sentimentos mais profundos, afinal de contas, em um mundo de frivulidades e imeidiatismo, como pode alguém querer consertar e dar valor ao que já não tem mais valor? E o texto nos leva a refletir sobre isso, aonde vamos parar, aonde queremos estar? Fica a pergunta aos nobres colegas leitores.