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Aos que querem a guerra, as lições de Sarajevo

Por José Messias Xavier

Há 29 anos, mais precisamente em uma manhã de 6 de abril de 1992, tudo mudou para os pouco mais de 329 mil habitantes de Sarajevo, uma cidade dos Bálcãs, no belo sudeste europeu. Viviam em harmonia há pelo menos 500 anos, com seus três grupos étnicos praticando três formas de cultos religiosos, os bosníacos muçulmanos, os sérvios cristãos ortodoxos e os croatas católicos. Naquele dia, contudo, essa realidade entrou em combustão.

Havia uma crescente tensão política na região e 2 mil moradores, entre eles o poeta bósnio-muçulmano Abdullah Sidran, foram às ruas pedir pela paz. Mas era tarde demais. As colinas de Sarajevo estavam tomadas por um cinturão de artilharia, com metralhadoras, lançadores múltiplos de foguetes, morteiros, tanques, canhões antiaéreos e os temidos franco-atiradores, todos sob a bandeira sérvia.

Tortura, assassinatos, fome, doenças, miséria, estupros, explosões, saques, massacres, covas coletivas, limpeza étnica, tudo isso aconteceu ao longo 1.380 dias, naquele que foi considerado o cerco militar mais longo e cruel da história moderna. Terminou com 11,5 mil civis mortos, contra 8,3 mil militares, além de 56 mil feridos.

A destruição montou trono em Sarajevo. Seus velhos e imponentes prédios históricos, templos e espaços públicos ganharam demãos de fuligem, com os constantes incêndios. Os obuses alcançavam as pessoas em grupos nas calçadas, seu sangue pontilhando o anoitecer, no horário em que buscavam comida para alimentar os filhos, escondidos, em solidão, entre escombros que um dia foram casas.

Como em todas as batalhas na história humana, a de Sarajevo produziu cenas surpreendentes, principalmente pelo seu forte contexto étnico. Algumas reproduzem a literatura, como foi o caso do jovem casal de namorados Admira Ismić e Boško Brkić, ela muçulmana e ele sérvio ortodoxo.

Para viver o amor em algum lugar distante da guerra, tentaram sair da cidade, mas, talvez por imprudência ou simples desespero, optaram pelo pior caminho possível, o zoológico, uma área, que separava as forças sérvias das muçulmanas, uma “terra de ninguém”, cercada por franco-atiradores dos dois grupos. Morreram de mãos dadas, oito dias se passaram antes que seus corpos fossem recuperados e, somente três anos após o fim do conflito, puderam ser enterrados lado a lado em um cemitério local. Impossível não associar à tragédia “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, escrita quatro séculos antes.

A população, no entanto, respondeu ao inferno com esperança. Os estudantes continuaram a ir às aulas, mesmo sob o risco de serem abatidos pelos atiradores – e muitos o foram. Os restaurantes, teatros e cinemas se mantiveram funcionando, na medida do possível, mesmo sob intenso fogo de armas pesadas.

Pode-se dizer que a vida, dia a dia, tentou empurrar a sombra da morte para fora da cidade, a ponto de, em 1993, ser realizado o concurso Miss Sarajevo, vencido por Inela Nogic, uma lourinha serelepe, de cabelos curtos, então com 17 anos. Sua coroação ocorreu sob feroz bombardeio sérvio, o que não impediu que, para chamar a atenção da comunidade internacional, uma faixa fosse exibida no palco, com a frase: “Don’t let them kill us” (“Não deixem que eles nos matem”). Em 1995, a banda pop irlandesa U2 lançou uma música sobre o episódio.

A guerra da Bósnia, marcada pelo cerco de sua capital, Sarajevo, teve, assim, múltiplos cenários e circunstâncias. Mas sua marca foi a rapidez com que a situação política da região se deteriorou. A partir da extinção da República da Iugoslávia, muçulmanos e croatas da Bósnia ratificaram, entre 29 de fevereiro e 1º de março de 1992, a independência da Bósnia e Herzegovina. Os sérvios, que boicotaram o referendo, haviam proclamado, em janeiro daquele ano, a “República Sérvia da Bósnia”.

No dia 5 de abril, Sarajevo já estava cercada, com os ataques sérvios se iniciando no dia seguinte. A guerra, uma combinação complexa de fatores políticos e religiosos, envolveu a Bósnia muçulmana, a República Federal da Iugoslávia, posteriormente dividida em Sérvia e Montenegro, e a Croácia, que havia proclamado na região a República Croata da Herzeg-Bósnia.

O fim do conflito, que contabilizou 100 mil mortos e 2,2 milhões de refugiados, ocorreu em dezembro de 1995 com o Acordo de Dayton, que dividiu a região entre a Federação Bósnio-Croata ou Federação Muçulmano-Croata, controlada por bósnios muçulmanos e bósnios croatas, e a República da Sérvia ou República Sérvia da Bósnia, governada por sérvios.

Sarajevo, cujo cerco foi levantado apenas em 29 de fevereiro de 1996, deixou uma lição para o mundo: vizinhos dormiram amigos fraternos e acordaram inimigos esganiçados e mortais, levados ao combate por líderes intolerantes e ambiciosos. Prevaleceu, todavia, a incrível capacidade do povo de enfrentar a tirania, sob qualquer circunstância. E a exposição ao mundo de uma crueldade inimaginável, cujos atores receberam a exemplar sentença de culpa entre as nações civilizadas.

Stanislav Galić, Dragomir Milosevic, Radovan Karadzic e Ratko Mladic, este último apelidado de “o açougueiro da Bósnia”, além de Slobodan Milošević, ex-presidente da Sérvia, entraram para a lista de párias entre as nações pelos massacres que ordenaram e comandaram durante a guerra e os ataques em Sarajevo. Mas outros de seus seguidores também foram condenados por tribunais internacionais. Essa é uma outra lição deixada pelo passado recente: nenhum líder cai sozinho.

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