José Messias Xavier | Apenas mais um domingo em Piratininga
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José Messias Xavier | Apenas mais um domingo em Piratininga

Atualizado: 20 de mai. de 2023

Por José Messias Xavier


Era hora do almoço de domingo. Ele saiu seminu na rua. Bradava contra a procissão de uma turba apática. Carros se amontoavam nas calçadas. Pequenas labaredas saltitavam nas esquinas. Céu opala. TUM... TUM... TUM... TUM... TUM. Havia esse som perturbador pontuando a música atordoante, que associou ao cheiro de meias sujas. Não, pior, bosta nova de cachorro. O barulho vinha de um templo dedicado a uma entidade, que desconhecia. Não podia ver, mas tinha a certeza de que uma multidão bramia em êxtase lá dentro. Tentou aumentar a voz, mas ninguém ouviu. Rogou por chuva, mas ninguém ouviu.

Reprodução

Pequenos felinos coloridos até buscaram unir-se à natureza daquele ser que, em princípio, acreditaram poder estar entre eles. No entanto, sua aparência e reações eram estranhas demais para uma criatura que lhes deveria aprazer. Tinha os olhos de serpente, a boca de uma mantícora e se esgueirava como os lobos. Mas zumbia como um besouro... ZUM... ZUM... ZUM. Incompreensível essa espécie, pensaram eles. E riram, mas riram como mariscos em uma cidade submersa. Nesse momento, deixaram de ser felinos.


Ah, a enorme mandíbula do caos, insaciável, infecunda. Sua poeira de sal empedra a vista. Poderia seguir em frente e mergulhar na escuridão dos sentidos. Seus dedos haviam se tornado lâminas afiadas. Guerra, sacrifício, medo de trovões, a doutrinação dos sacerdotes. A morte sorri, limpa as unhas e afia a foice. Altares em chamas, mar vermelho, fogueiras prontas para receber as oferendas, corpos em mítica simetria. Cruzes nas colinas.


Algo aconteceu, contudo. Talvez o pio distante de um gavião solitário, ou o tatalar de uma libélula em desafio a qualquer noção de tempo e espaço. Olhou para trás. O portão da casa ainda estava aberto. Retrocedeu os passos. CLAM. Voltou ao seu ambiente, seu mundo. Cores e formas aos poucos ganharam sentido. E veio a metamorfose reversa. Correu para o espelho, esse amigo sincero. Já não era mais uma quimera. Voltara a ser homem, com braços, pernas, olhos, boca, um coração aquecido pelo sol tropical, memórias de vida, desejos frustrados e pulmões encatarrados – coisas do clima e do nervosismo, imaginou. Ainda suava, é bem verdade.


O cheiro da cozinha, contudo, arrebatou-lhe. Sua mulher preparava uma bela perdiz no forno. Sentou-se no sofá. Lembrou-se do motivo da irritação pelo que ocorria além de seus muros. Na tevê, os acordes iniciais do quarto movimento da “Nona” de Beethoven, uma poderosa defesa da humanidade perante Deus, com os versos de “Ode à Alegria”, do poeta alemão Friedrich Schiller, precursor do Romantismo, amigo de Goethe. O coro entra em sua parte favorita: “Alegria, formosa centelha divina, filha do Elísio. Ébrios de fogo, entramos em teu santuário celeste. Tua magia volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanaram sob tuas delicadas asas. Se abracem milhões de seres. Enviem este beijo para todo o mundo”.


Percebeu que, na mesa de centro, o copo de vinho, um Chianti, o aguardava. Ao lado dele, “Meditações”, de Marco Aurélio. “A alegria do homem consiste em fazer o que é próprio de homem. Próprio de homem é querer bem ao seu semelhante, desprezar as comoções dos sentidos, distinguir as ideias fidedignas, contemplar a natureza do universo e os acontecimentos conformes com ela”, escreveu o imperador romano, seguidor do Estoicismo de Zenão de Cítio.


Em uma das pontas do móvel, um exemplar da “Antologia da poesia clássica chinesa: Dinastia Tang”, da Editora Unesp, que reúne textos de pouco mais de 30 poetas da cidade de Chang'na, no período 618-907 d.C. Nele, os versos de “Paisagem de Primavera, de Du Fu (712-770): “Tudo em ruínas; restam rios, montanhas. / É primavera e crescem árvores, grama. / Ressentem o tempo as flores, deitam lágrimas, / ao ódio espantam-se e separam os pássaros. / Fogueiras queimam longo tempo aos cumes, / cartas do lar valendo uma fortuna. / Cabelos brancos cada vez mais ralos: /ao alfinete do chapéu nem bastam”.


A noite veio. Fome saciada. Ele e a mulher foram para o quarto e, deitados, se olharam. Os filhos estavam criados. As plantas no jardim, regadas, davam frutos. Seu aroma perfumava a casa. Na doçura dos olhos da companheira, um universo. Chegara o tempo, enfim, de uma nova vida. E o mundo é vasto, antigo e sábio, muito mais que apenas um domingo em Piratininga.


SEM POESIA NÃO DÁ


SEJA O QUE FOR QUE ESTEJA NO CENTRO DO MUNDO

(Alberto Caeiro – heterônimo de Fernando Pessoa)


Seja o que for que esteja no centro do Mundo,

Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,

E quando digo «isto é real», mesmo de um sentimento,

Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,

Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.


Ser real quer dizer não estar dentro de mim.

Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.

Sei que o Mundo existe, mas não sei se existo.

Estou mais certo da existência da minha casa branca

Do que da existência interior do dono da casa branca.

Creio mais no meu corpo do que na minha alma,

Porque o meu Corpo apresenta-se no meio da realidade.

Podendo ser visto por outros,

Podendo tocar em outros,

Podendo sentar-se e estar de pé,

Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.

Exista para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente existe —

Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo.


Se a alma é mais real

Que o mundo exterior, como tu, filósofo, dizes,

Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade?

Se é mais certo eu sentir

Do que existir a coisa que sinto —

Para que sinto

E para que surge essa coisa independentemente de mim

Sem precisar de mim para existir,

E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmis­sível?

Para que me movo com os outros

Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos

Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?

Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.

E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.

Coisa por coisa, o Mundo é mais certo.


Mas porque me interrogo, senão por que estou doente?


Nos dias certos, nos dias exteriores da minha vida,

Nos meus dias de perfeita lucidez natural,

Sinto sem sentir que sinto,

Vejo sem saber que vejo,

E nunca o Universo é tão real como então,

Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim,

Mas) tão sublimemente não-meu.


Quando digo «é evidente», quero acaso dizer «só eu é que o vejo»?

Quando digo «é verdade», quero acaso dizer «é minha opinião»?

Quando digo «ali está», quero acaso dizer «não está ali»?

E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?

Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,

E o primeiro facto merece ao menos a precedência e o culto.

Sim, antes de sermos interior somos exterior.

Por isso somos exterior essencialmente.


Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.

Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,

Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,

Se isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?


“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).



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