Artigo: Lugar de Gine é no Gineceu
Por Railane Borges
O ano eu jamais vou me esquecer. Era 1998. Eu tinha acabado de completar dez anos de idade e estava no quinto ano do ensino fundamental, a antiga quarta-série. Era dia de entrega de redação e eu ainda tateava minha consciência de mundo, quando a nossa professora de português tentava, pela milésima vez, me explicar algo que hoje já não tenho certeza se não era capaz de compreender ou se me recusava. Eu tinha escrito um belíssimo texto sobre as férias do meio do ano e lia em voz alta para a turma sobre um momento específico em que estava na cozinha de nossa casa de veraneio em Iguaba Grande, na presença das minhas maiores referências de vida. Minha mãe, minhas avós, primas, tias e irmão. Eu naturalmente discorria sobre o evento depois de ter citado uma a uma as pessoas presentes.

- “Estávamos todas juntas na cozinha preparando bacalhau com natas, um de meus pratos prediletos”.
E então a voz da Sônia me interrompeu:
- “Querida, seu irmão estava presente, certo?”
-“Certo”, eu respondi.
“Então o seu plural deveria estar no masculino”. E repetiu: “Estávamos todos juntos na cozinha...”
Aquilo me causou uma estranheza inesperada. Eu fazia e refazia as contas. E pensava: “Ela não pode ter ouvido direito. Eu disse minha MÃE, AVÓS, TIAS, PRIMAS”. Eu não era genial com números, mas aquela matemática não fechava. O meu irmão era um menino franzino de 17 anos, barba rala e voz fina e não era possível que semanticamente tudo se tornasse sobre ele. A pulga que descobri vivendo atrás da minha orelha daquele dia em diante, jamais iria embora. Com o passar do tempo fui descobrindo, não sem dor, o que aquilo significava.
Estamos em 2024 e os Estados Unidos da América elegeram para presidente um assediador condenado, ao invés de uma mulher de conduta ilibada. E foi impossível não pensar em como a misoginia tem recrudescido suas práticas através dos anos para nos manter escravas de um sistema feito por homens, para o sucesso dos homens.
Não é um segredo que a misoginia seja a mais antiga forma de preconceito na sociedade e que vai muito além das estruturas gramaticais. Mas ainda surpreende que, veladamente nos dias de hoje, ela nos roube tanto, com mentiras repetidas à exaustão para nos vender uma escravidão que, à primeira vista, vestem-se de liberdade.
Não seria justo dizer que a luta de muitas mulheres até aqui não foi capaz de diminuir algumas distâncias na tentativa de reestabelecer alguma dignidade na existência feminina, mas a verdade é que o progresso romântico e a realidade têm nuances muito diferentes entre si e a luta contra esse sistema será sempre infinita.
A misoginia não diminuiu, como alguns de nós pensamos, mas se reinventou, refinou-se, vestiu-se de ‘modernidades’ e é preciso estar atenta para se desviar. Nós lutamos pelo direito ao voto e votamos, mas não somos eleitas. Muito pelo contrário. Somos usadas como ‘laranjas’ em falsas nominatas, cuja última intenção é de fato nos eleger. Assim, as políticas públicas que deveriam abraçar humanismos com mais força que economias, ficam sempre relegadas ao último plano. Nós fazemos parte de um mundo que odeia as mulheres e as crianças, como consequência. Parafraseando a jornalista argentina Marisa Avigliano, “quando se inventou a roda, a misoginia já dava ao menos quatro piruetas no ar”.
Exaustas, acumulando funções e desviando de assédios de todo tipo, corremos contra o tempo frente à mais nova lei instaurada pela década da parecença: está terminantemente proibido envelhecer. Desta vez nos ofereceram o mesmo truque antigo de nos dar espelhos nas mãos, mas neles tinham filtros, e o que vemos não é sequer o retrato fiel de quem somos, mas uma imagem distorcida de uma falsa juventude e isto virou um prato cheio para a indústria da beleza lançar suas amarras sobre nós, controlando nossos bolsos e sonhos. Este é o direito que nos tem sido tomado nestes dias.
Ao ler o jornal há duas semanas, deparei-me com a estarrecedora notícia de que o Brasil é o país do mundo em que mais se realizam intervenções estéticas. Em qualquer esquina. Com absolutamente qualquer profissional. O jogo tem apenas uma regra: não envelheça! Porque se você envelhecer, irá se tornar imediatamente obsoleta, sem graça, sem ‘engajamento’. Depois de Pandora, fizeram puta Maria Magdalena por andar livre em torno dos homens, e Maria, santa pela castidade por ser canal de nascimento desprovido de desejo ou prazer.
Séculos depois e ainda lutamos pelo direito a nos reconectar com a nossa sexualidade como um traço inerente à natureza feminina. Enquanto tratamos as dores profundas dos abusos sexuais que 98% de nós experimentamos, não conseguimos nos livrar da hipersexualização dos nossos corpos. A objetificação se explicita em cada foto postada nas redes. É o que aprendemos quando nos damos conta da diferença de distribuição do nosso “conteúdo” se postamos uma reflexão acompanhada de uma foto do pôr-do-sol, ou uma foto de biquíni.
Estamos mais confusas, separadas e desesperadas por atenção do que jamais estivemos. Recentemente uma obra-prima cinematográfica mostrou a todos que essa não é uma questão local. A francesa Coralie Fargeat, em seu filme “A SUBSTÂNCIA”, retratou com perfeição e requinte visual o monstro de muitas cabeças que se tornou a indústria do rejuvenescimento. Em um body horror, onde Demi Moore, na melhor atuação de sua carreira, entrega uma estrela hollywoodiana em decadência, capaz de mergulhar de cabeça em uma experiência com uma substância desconhecida, em busca de uma nova versão de si mesma, mais jovem, mais sexy e mais bela que nunca.
Nesse tipo de realidade, que deixou há muito de ser distópica, há apenas um desfecho possível: o esmaecimento completo de todo um gênero, que se esforça para esquecer todos os dias, que a única resistência possível em um mundo que persiste em tentar nos matar ainda durante a juventude, é, justamente, envelhecer.
*Railane Borges é atriz e cineasta
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