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Cada vez mais quente

Por Railane Borges


Acordei porque estava quente. O conforto das cobertas foi substituído rapidamente por um abafamento. Eu e o caçula dormíamos juntos e os outros, que dormiam menos, já tinham pulado de suas camas antes do sol nascer.

Pixabay
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Quando eu abri os olhos e tirei a perna da fresta que invadia o quarto através do vidro da janela, estava tão quente que demorei cerca de 10 segundos para pensar nisso. Em seguida levantei os olhos na direção do ar condicionado. Estava ligado. (Isso e nada eram a mesma coisa) Martin também acordava, esparramado feito ponteiro de relógio às 12:30.


“O Ravi já desceu né? Eu gosto de dormir com você porque você é fofinha”


Meu filho andava um dengo ultimamente e eu agradecia em silêncio por essa fase, afinal mesmo tendo apenas quatro anos, ele sempre demonstrou uma grande autonomia, sendo menos físico na forma de demonstrar carinho, fosse para suportar dores, ir na frente quando alguém estivesse com medo ou virar porco-espinho quando a raiva tomasse conta de seu corpo.


Quando descemos, o do meio estava esperando no sofá com o rosto pingando. Debaixo dos seus olhos se aglomeravam pequenas bolhinhas de suor, exatamente como acontecia com seu avô.  Aquela era a famosa beleza no caos. O adolescente tinha levado o ventilador da sala para o quarto como reforço para o ar-condicionado.


Sai um pouco para o jardim e o mundo parecia um forno pré-aquecido pronto para receber a pizza. Nós éramos o queijo. Eu precisava trabalhar, mas antes era bom dar um banho nos cachorros, pensei. O gato estava desmaiado debaixo de uma mesa. Ninguém quis comer sentado diante de canecas e comidas típicas do café da manhã .


O gato não quis comer sua ração úmida. Estávamos todos sem ânimo. Enquanto tomava desconfortavelmente o meu café, achei que poderia ser uma boa ideia ler os portais de notícias, o que sempre me faz sentir saudade do ronco do motoqueiro passando ás 5:30 da manhã e volta e meia jogando o jornal em cima do telhado.


Dito isso, estampando a primeira página, o presidente dos EUA anunciava que acabaria com normas ambientais que estavam atrapalhando o progresso da sua nação. Nada de redução de gases na atmosfera. Para ele, o efeito estufa era uma falácia, mesmo que seja notável que o clima tenha tomado ares cada vez mais apocalípticos nos últimos anos.


Em janeiro de 2025, batemos um novo recorde consecutivo de calor. No Pará está concentrada a maior porcentagem de pessoas no Brasil que sofrem com o estresse térmico. Algumas delas passaram até 228 dias seguidos com temperaturas acima de 35°. De forma atípica e desumana, o mundo reage às escolhas dos poucos à frente de muitos.


Eu costumava me gabar de ter nascido em uma década pacífica, sem grandes eventos ameaçadores em processo, com excesso de tecnologia e facilidade para acessar conhecimento. Agora me ressinto da minha própria ingenuidade. Ontem eu tive uma reunião de pitching às 14:00 na cidade vizinha. Quando entrei no carro, o termômetro que eu supus quebrado, marcava 50° celsius. Depois de 10 minutos de viagem, senti uma sonolência inesperada.


Quando meu marido me chamou perguntando se estava tudo bem, não consegui responder. Senti meus lábios perderem a cor, e a moleza me invadir com tudo. O único projeto que eu seria capaz de vender naquela condição seria um bunker à prova de explosões nucleares.


Aliás, a China começou a construir um que ocupará cerca de 880 campos de futebol. Não imagino que seja uma medida cautelar que tenha relação direta com o clima, acredito mais em uma garantia de sobrevivência caso alguém egoísta e louco o bastante deseje trilhar a estrada do auto-extermínio da espécie humana, levado cegamente por suas ideias insanas de uma suposta superioridade.


Eu não sei. Eu sempre achei que seria uma excelente companhia para o fim do mundo. Sou teórica do apocalipse. Desde cedo eu me preparo para isso. Dizem que é coisa de quem viveu algum trauma, mas não sei afirmar. Quando eu pensava no fim de tudo e minha mente fantasiosa se punha em movimento, lá estava eu no meio de um apocalipse zumbi ou de uma invasão alienígena. Eu não contava de ter que lidar com os 50° graus tendo uma pressão naturalmente baixa.


A reunião não foi boa. Não é fácil convencer as pessoas a sonharem com arte e cultura no decorrer do fim do mundo enquanto elas derretem. A sala de reunião estava sem ar-condicionado, pois como nos disse nosso anfitrião, tinha queimado no dia anterior. Nem os motores estão suportando o calor.


Eu saio do prédio ainda sem o corpo totalmente presente, pensando na graça que tinha me sentir como aqueles músicos do Titanic que desistem da disputa para os botes e simplesmente decidem seguir tocando para as pessoas, enquanto elas correm desesperadas do destino congelante que inevitavelmente se aproxima. Eu só precisava de uma água bem gelada.


Quando buscamos os meninos na escola, eles estavam radiantes! Tinham tido banho de mangueira! Pensei em como era bom ser criança. Eles não entendiam que a escola tentava lidar com o desconforto causado pelas altas temperaturas.


Voltei para casa com eles e vivi a moleza do dia. Nos dei inclusive folga da nossa rotina alimentar e pedi um hambúrguer para cada um de nós. Levei um tempo para me restabelecer. Mas eu vou. E eu vou aprender a perseverar mesmo diante desse panorama. Todos vamos precisar nos adaptar.


E enquanto me adapto para sobreviver, vou torcer para que as pessoas comuns se organizem. Torcer para que se envolvam, para que dêem um passo à frente e se apresentem para a resistência. Esses são tempos críticos. Podemos e precisamos fazer muitas coisas antes que tudo seja apenas sobre sobreviver. Ontem fui capaz de sobreviver. Chego ao fim de hoje com calor e dó, lágrimas e suor. Que será do mundo, senhores? Do mundo de amanhã?


* Railane Borges é atriz e cineasta

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2 Comments


Se hoje estamos sobrevivendo a condições temerárias para a qualidade de vida humana, fico com receio do mundo que nossos filhos irão lidar. Trinta anos atrás, se falava muito já das questões climáticas. Poderemos testemunhar para as próximas gerações, que ar condicionado era um aparelho de luxo né!? Era opcional na compra de um carro. Eita, imagina carros 0KM sem ar condicionado? rs


Vamos seguir plantando nossos ipês, Raí. ☺️ Vai que💚

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Bom .o ser humano continua na sua meta de destruição do planeta. Li agora que a barreira de corais do Nordeste está morrendo por conta do turismo predatório e da mudança climática . Nada que surpreenda quem tem ummminimo de informação. Somos a maior praga a afligir o planeta sem dúvida

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