Crônica: Cuidado para não adultecer
Por Railane Borges
Esse negócio de caber dentro do corpo nunca foi para mim. Desde muito pequena carrego um desassossego que urge por sair e extrapolar a realidade. Sempre imaginei como seria me derramar no mundo.

Escorrer por dentro das brechas do chão como um balde de tinta virado sobre uma tela branca a ser absorvida pela terra e seus sais, em comunhão com tudo. Nunca fui capaz de aceitar a energia estática do vazio ou a separação entre os limites dos dedos e os objetos tocados. O ar parado do meio dia da infância, quando a autonomia não te permite os passeios além dos portões, me causava uma gastura no estômago que certa vez, confundi com fome. Mas era uma fome diferente. De viver muitas vidas. Experimentar muitos sapatos e não escolher nenhum. Os pés rebeldes sempre descalços.
Com os olhos a buscar movimento em toda parte, percebi que estar naquele mesmo lugar onde estava, sem curvas, sem as subidas e descidas ascendentes de um grande melodrama, seria pouco para mim.
O primeiro transbordamento foram as lágrimas. Os espetos constantes no nariz que se passavam em qualquer lugar, por qualquer motivo vivo. Uma libélula com o rabo azul petróleo pousada na folhagem verde do jardim da minha casa pronta para um rasante fantástico, a luz do sol recortando um facho através dos galhos da alamanda, uma frase robusta com palavras bem escolhidas por alguém admirável, pessoas cantando juntas a uma só voz. E lá vinha a água salgada de dentro para fora, inundando de sentimentos o meu afeto sensível.
Eu sei que nasci artista. O simples se fazendo extraordinário a cada dobra de tempo-dia. Eu demorei a descobrir. Antes achava que fosse só estranha, procurando som nas cores e luzes no escuro, sem querer dormir para não perder nenhum segundo dessa curiosa situação que ocorreu fora do túnel que atravessei para estar aqui.
Encadeei mensagens no mundo das coincidências e construí significados subjetivos para eventos da vida. A mim tudo fala. Mesmo o silêncio. De um jeito meio torto sem saber onde derramar a agonia de estar presa a este molde vivo, caminhei pelas sombras sem pisar nas linhas, até encontrar alguém com olhos, que me sussurrou algo familiar (como os ventos que carinhavam o rosto nos dias de sol que passei na praia) “eu também vejo, você precisa de palco”.
Na mesma peça, a primeira, fui mãe, amiga, filha, arbusto e boto. Naquele dia dormi sem a sensação de que estava perdendo algo importante.
O problema dos palcos, é exatamente quem vê quando cada um que olha, constrói daí a consciência do visto. Eu era brincante de mundo, mas não criei afeição por muitos modos de ver. Estar sob os holofotes não era o mesmo que se libertar do corpo que me segurava por dentro. Bicho livre, rodopiei sobre meu próprio eixo, leal a mim e escorregadia aos outros. Pele de peixe-boi que nem é peixe. Eu, pessoa que não era bicho, sendo. Quem não entende nossos silêncios jamais compreenderá nosso compêndio de palavras.
Foi nesses encontros incompreensíveis que conheci a maldade. As más interpretações. A mágoa e o amargo dos rompimentos humanos que tinham um gosto diferente fora do tablado. Minha ingenuidade não morreu de morte morrida, morreu de morte matada e até hoje vivo esse luto.
Foi assim que finquei a bandeira na minha lua. Planeta eu. Entendi aos poucos que o mundo não gostava de seres brincantes, de respostas indiretas, do imprevisível, do arroubo impulsivo no desejo que brota do estado humano, da intuição das mulheres. Crianças, artistas ou palhaços, a subclasse de todas as classes.
Quando o tampo se fechou comigo abaixo do chão, aprendi a sobremorrer, que é quando você se faz de morto no meio dos outros para estar com a mente viva e inalcançável. Era onde eu podia resistir. Se primeiro foram as lágrimas, logo depois vieram as palavras não-ditas. Os guardanapos rabiscados nos jantares maduros, os caderninhos a tira-colo que carreguei em todas as festas, viagens e encontros. Escrevi nas paredes, nos móveis, nos muros, no corpo, e nunca se bastavam. Parecia ansiedade mas nunca foi. Era como eu derramava melhor a minha substância interior. Foi como aprendi a transbordar o protagonismo da minha curiosidade.
Até hoje, é uma tentativa desesperada de uma artista de agarrar-se à vida, aos detalhes que escorrem pelo tempo, que fazem desta narrativa a melhor história que eu poderia alcançar em minha companhia.
Meu início, meu meio e meu fim.
Ontem estive novamente no teatro. No hall de entrada, em um pequeno quadro, uma frase em letras garrafais: “CUIDADO PARA NÃO ADULTECER”. Meus dedos dos pés se mexeram por dentro do sapato, massageando o chão e as raízes por debaixo.
Algo familiar me cutucou a alma e eu soube: estava em casa, estava comigo, em mim. Como disse Camille Claudel, em uma das frases mais emblemáticas nas quais tropecei:
“Há sempre uma ausência que atormenta”.
Se você desligasse o mundo normativo, no que deitaria sua existência? Aonde você mora, sujeito? Quem é você? O que te morde aos poucos e te leva esses pedaços que faltam?
*Railane Borges é atriz e cineasta
Mergulhar em suas escritas nos fazem refletir sempre diante a nossa existência.
E eu aqui… admirando a artista em sua jornada neste mundo quase estéril …
Tanto que me desviei da lenda pessoal desejada, e agora tenho o privilégio de ler essas linhas, tão agudas e ao mesmo tempo sensíveis na direção de buscar essências.
Texto que nos prende até o fim. Maravilha Railane, por expressar aqui, o que vivenciamos também.
Mais um belo texto! Parabéns Railane, sempre nos instigando com palavras tão bem colocadas!
Um texto maravilhoso.
Nos faz lembrar que nós seres humanos não somos máquinas.
Eu uma sociedade a qual nos obriga a sempre sorrir e não errar, o texto vem nos lembrar de que falhamos e isso é bom, porque aprendemos com nossos erros.