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Emergência: embate entre vida e morte nos hospitais de Niterói

Atualizado: 15 de jan.

Por Mehane Albuquerque


Inspire. Encha os pulmões de ar. Dê uma pequena pausa e solte bem devagar. Repita várias vezes. Tente sentir o oxigênio entrando e saindo do seu corpo e o prazer que isso proporciona às células, aos tecidos e aos órgãos internos, especialmente ao coração. Parece algo tolo, de tão óbvio. Porém, são tantas coisas acontecendo à nossa volta, tantos pensamentos e afazeres que às vezes não nos damos conta de que somos 'seres respirantes'. A coisa mais básica e totalmente necessária à vida passa desapercebida na maior parte do tempo pela maioria das pessoas. Até que algo acontece...

Foto: Mehane Albuquerque
Foto: Mehane Albuquerque

No dia 18 de dezembro comecei a sangrar. Não foi tosse com veios de sangue, mas um sangramento intenso e incontrolável. Assim começou uma cansativa e dolorosa experiência em emergências de hospitais em Niterói. Até que, finalmente, depois de quase duas semanas de sofrimento, recebi o tratamento adequado.


Primeiro, fui atendida na Unidade Municipal de Urgência Mário Monteiro, em Piratininga, perto de casa. O local foi reformado recentemente e conta com uma boa estrutura, mas o atendimento médico, dependendo da equipe de plantão, pode ser superficial e desumano. Na primeira vez em que lá estive, pouco antes do Natal, no dia 19 de dezembro, uma quinta-feira de manhã, o médico me disse que não era grave. Mal olhou para mim, não pediu exames e 'intuiu' que se tratava de um sangramento estomacal. Receitou um remédio que é um tipo de 'coringa' em unidades de emergência - o omeprazol - e me mandou para casa.


O sangramento aumentou e à noite voltei ao Mário Monteiro. Um segundo médico, um pouco mais atencioso, providenciou um Raio-X de tórax e um exame de sangue. Fui para uma sala com cadeiras verdes que deveriam ser reclináveis, mas não funcionavam, e que apesar de estofadas eram extremamente desconfortáveis. As enfermeiras me colocaram no soro, colheram sangue e algumas horas depois, o médico confirmou o diagnóstico anterior. Eu estava com uma úlcera, segundo ele. Receitou antibiótico e mais omeprazol. Me deu um encaminhamento para um gastroenterologista da rede pública e um pedido de endoscopia. E me aconselhou a procurar a emergência do hospital municipal Carlos Tortelly ou do hospital estadual Azevedo Lima se o problema continuasse.


Apesar da medicação, o sangramento só aumentava. No domingo, dia 22 de dezembro, meu filho me levou para o Azevedo Lima, que possui maior estrutura para atendimento de urgência. Passei pela triagem e foi feita uma tomografia de tórax. A médica do plantão, depois de esclarecer que a emergência do hospital era específica para traumato-ortopedia — uma forma de dizer que eu não receberia tratamento algum além do atendimento ambulatorial — verificou que se tratava de um sangramento pulmonar. Disse que eu estava com pneumonia bacteriana aguda e dobrou a dose do antibiótico que eu já vinha tomando. Aconselhou que eu voltasse na semana seguinte se não houvesse melhora. O sangramento não parou. Eu tinha muita dificuldade de respirar, muitas dores no peito e nas costas, e não conseguia comer ou dormir. Foram dias e noites terríveis.


No dia 30 de dezembro, voltei sozinha ao Azevedo Lima. Cheguei bem cedinho, antes das 7h, e o hospital estava vazio. Passei pela triagem de praxe: exame de pressão, temperatura e oxímetro no dedo. Fui atendida pelo médico de plantão, um homem alto, corpulento, barbudo e muito atencioso. Assim como a médica que me consultou na semana anterior, ele fez questão de avisar que a emergência do Azevedo Lima era apenas para casos de traumato-ortopedia, quase me perguntando: 'o que você está fazendo aqui, se não quebrou osso algum, não sofreu queda ou acidente no trânsito?'. Expliquei que a colega dele havia me orientado a voltar se o sangramento persistisse. Ele, então, me encaminhou para uma nova tomografia, exame de sangue e teste de Covid-19. Fui informada que o resultado dos exames iria demorar cerca de três horas.


Estava com fome e fui até um trailer de lanches que fica na entrada da emergência principal. Ao me aproximar, notei algo totalmente inusitado. Sobre uma grande caixa de metal lacrada com cadeado e à beira da calçada, ao lado de uma cesta de lixo cheia embalagens de papelão e plásticos, havia uma estátua de Buda, em porcelana branca. Era um daqueles budas gordinhos e sorridentes, com as mãos posicionadas em 'Abhaya Mudra'. O que uma estátua de Buda estaria fazendo ali? Não estava quebrada ou danificada... Quem teria jogado aquele Buda no lixo e por quê? Tive o ímpeto de pegar e levar, mas me contive. Apenas tirei algumas fotos com o celular, pois ninguém iria acreditar se eu contasse.


No trailer, dei uma olhada na vitrine repleta de ultraprocessados, doces e biscoitos de vários tipos. Havia também os chamados 'sanduíches naturais'. Mas nada me apeteceu, principalmente porque havia muitos pombos pousando e batendo asas em volta das mesas. Os próprios funcionários da lanchonete jogavam migalhas para eles. Aquilo me deixou enjoada. Pedi um Gatorade, paguei e saí o mais rápido que pude. Ao passar pela lata de lixo o Buda não estava mais lá. Me arrependi de não ter levado comigo.

Foto: Mehane Albuquerque
Foto: Mehane Albuquerque

Voltei ao hospital e àquela altura a sala de espera estava cheia. Fiquei em pé por mais de duas horas aguardando o resultado dos exames. O médico que havia me atendido mais cedo já havia ido embora. Me sentindo perdida, perguntei no balcão se os exames estavam prontos. A atendente disse que sim, imprimiu os resultados, mas não quis me mostrar. Pela cara dela parecia que havia algo errado e isso me deixou nervosa. A mulher levou os papeis ao consultório 2 e disse que o médico iria avisar quando chegasse a minha vez. Era um clínico jovem, que abria a porta ao final de cada consulta e chamava as pessoas pelo nome.


O tempo foi passando e a sala de espera foi ficando lotada. Havia pessoas gemendo, idosos acomodados em cadeiras de rodas, gente desmaiando, acidentados e mães com crianças chorando. Os seguranças levaram mais assentos para o salão. Quis me sentar, mas achei que não era justo tirar o lugar daquele povo tão sofrido. Me agachei e fiquei com as costas apoiadas na parede por um longo tempo. Minha vez não chegava e o plantão do jovem médico acabou.


Um outro clínico, mais velho, assumiu o consultório 2. Aproveitei para perguntar quando seria atendida. Eram quase três horas da tarde. Ele disse que meu caso não era grave e que me chamaria depois de atender os mais urgentes. Quando, enfim, chegou minha vez tentei relatar rapidamente o que estava acontecendo comigo, mas ele praticamente não ouviu. Falava sem parar, parecia agitado e xingava palavrões. Fiquei constrangida e permaneci calada até o final da consulta, que durou cerca de 15 minutos. Depois de olhar os exames, ele disse que o diagnóstico anterior estava errado, que a pneumonia era viral e não bacteriana. Mudou o antibiótico e mandou que eu tomasse por mais sete dias.


Cheguei em casa no fim da tarde, tomei um banho, tentei comer, liguei para a farmácia e comecei a tomar o novo remédio. Não conseguia dormir. A cama parecia ter pregos. Às 4 da manhã senti fortes dores no peito, que se estendiam pelo braço esquerdo e pelas costas. Pensei que estivesse enfartando. Fui para o Mário Monteiro novamente, na esperança de que me encaminhassem para internação em um hospital municipal. Não conseguia respirar, nem me manter de pé.


O dia estava amanhecendo. O médico do plantão me mandou para a sala de cadeiras verdes e me deu uma máscara de oxigênio. Mostrei os exames feitos no dia anterior, mas ele pediu um novo exame de sangue, Raio-X e eletrocardiograma. Constatou, por óbvio, que eu estava muito nervosa e que a pressão estava alta. Me deu remédios, entre eles um calmante. Era dia 31 de dezembro, véspera do ano novo.


Fechei os olhos e parecia que não tinha mais corpo. Cheguei a ter dúvida se ainda estava viva ou se havia morrido, mas ouvia ao longe as enfermeiras falando sobre os planos para a festa da virada. Uma delas, mais jovem que as demais, me conduziu à sala ao lado para o eletrocardiograma. Colocou eletrodos em mim e fez mais de dez tentativas. Embolava os papéis gerados pelo equipamento e jogava no lixo. Todo aquele desperdício e a falta de paciência dela me deixaram mais tensa. Reclamou várias vezes que a máquina estava com defeito, até que uma enfermeira mais experiente entrou e disse que o aparelho estava funcionando normalmente e que ela, a mais nova, é que havia esquecido de passar o 'gel'.


Exame feito, me pediram que fosse para o Raio-X. Mal conseguia andar, mas me arrastei até a sala de imagem. Tentei ficar de pé, mas caí no chão. Ainda assim, a técnica de radiologia disse que havia conseguido bater as chapas. Precisei me apoiar nas paredes para voltar à sala de cadeiras verdes, onde me deram novamente a máscara de oxigênio. Colocaram um acesso na veia do meu pulso, depois de tentativas sem sucesso e várias veias estouradas, e injetaram remédios que eu não sabia quais eram. Senti uma sede terrível. Pedi água, mas ninguém me ouvia. A enfermeira mais experiente avisou que não me daria água pois eu iria vomitar. E continuou a conversa animada com as outras sobre a noite de ano novo.


Ao meu lado, uma mulher negra gemia e dizia que estava morrendo. Com a blusa levantada, ela exibia um caroço na lateral da barriga. Pedia ajuda às enfermeiras, mas elas fingiam não ouvir. Uma delas, então, se aproximou e disse friamente: "Você sabe que não vai morrer e que seu tumor é benigno. Não podemos fazer nada além de dar remédio para a dor".


Eu já não conseguia ficar sentada na cadeira, que parecia um instrumento de tortura. Perguntei se poderiam me levar para um leito, pois precisava me deitar, mas elas também me ignoraram. Continuei perguntando se haveria um lugar onde pudesse deitar e uma delas, mais velha, magra, de cabelos escuros e curtos, respondeu com desprezo: "O que temos é isso". E, rindo com escárnio, comentou com as outras: "Aposto que essa daí é fumante". Sim, eu era. Comecei a fumar havia 13 anos, tardiamente, aos 50 de idade. Por problemas emocionais, financeiros e inseguranças várias. Mas isso não era motivo para ela me tratar daquela forma. Além de debochada, não tinha a menor ética e demonstrava detestar a profissão que escolheu.


A enfermeira mais experiente, a do eletrocardiograma, que parecia ser chefe das demais, me trocou de lugar e me colocou numa cadeira cujo encosto reclinava, como deveria ser, mas o apoio para os pés não levantava. Sem conseguir me acomodar direito, escorregava para baixo e tinha que fazer força para permanecer recostada. Cansada de resistir, deixei o corpo descer até o chão, deitei o tórax sobre o assento da cadeira, sentindo muita dificuldade para respirar, mesmo com ajuda do oxigênio. Fiquei assim por um tempo, quase uma eternidade, até que uma médica apareceu. Eu estava zonza e não conseguia ouvir o que ela dizia às enfermeiras. Pouco depois, entrou o maqueiro e me levou para a Sala Vermelha.


Eram quase 10h da manhã. Só então me deram o tratamento adequado. Fui atendida pelo médico plantonista, o clínico Thiago Braga Moura e equipe, a quem sempre serei grata. Me deram o suporte necessário de oxigênio, pois o nível em meu sangue estava baixo. Fizeram nebulização com broncodilatadores para facilitar minha respiração. Colocaram eletrodos em meu corpo para monitorar pressão e batimentos cardíacos, além de oxímetro. Colheram sangue, injetaram antibióticos mais fortes e outros remédios, e me alimentaram, pois eu estava muito fraca.


A enfermeira Magdala (infelizmente não me lembro do sobrenome) me acolheu e acalmou, ao contrário das outras, na sala de cadeiras verdes, que pareciam ter raiva dos pacientes. Me senti como se tivesse sido transportada para outro hospital, totalmente diferente do Mário Monteiro anterior. Cuidaram de mim com profissionalismo e dedicação.


Fiquei lá até o fim do dia, quando meu quadro clínico estabilizou. Nesse meio tempo, teve reanimação de pacientes e gente morta levada pelos bombeiros para o certificado de óbito. O lugar que se assemelha à antesala do purgatório é, ao mesmo tempo, esperança de vida para pessoas como a Dona Olindina, uma senhora idosa que ficou no leito ao meu lado, separado por uma cortina. De olhos fechados, procurando sentir o corpo absorver aquele abençoado oxigênio, ouvi a movimentação da equipe lutando para fazê-la viver. Naquele momento pensei na estátua do Buda e do Abhaya Mudra, posição das mãos que simboliza coragem e superação. A mesma coragem de que se valem os profissionais de emergências para superar a morte todos os dias. Dona Olindina viveu. Não sei o que aconteceu com ela depois de ser removida de lá para o hospital, mas gosto de pensar que a essa altura já tenha voltado para casa.


Passados 25 dias estou bem melhor, menos ofegante e cansada. Já consigo inspirar e expirar sem tossir, sem expelir alcatrão e sem chiado no peito. Não voltarei a fumar. E restabelecer a função pulmonar me fez recordar um episódio significativo ocorrido em minha adolescência. Eu tinha quinze anos. Era o primeiro dia de aula de biologia do professor Teixeira, no Colégio Arte e Instrução, onde cursei o início do 'científico' (hoje ensino médio), antes de ser transferida para o Colégio Piedade, ambos na Zona Norte do Rio. O mestre tinha fama de ser muito exigente e todos o chamavam de 'carrasco'. Só perdia para a Karenina, a temida professora de geometria descritiva.


Ele entrou na sala, deu 'bom dia' e começou a escrever no quadro negro. Os alunos não paravam de falar. Visivelmente irritado, se voltou de repente e gritou para a turma barulhenta: "Chega! Valendo zero ou dez. Vou fazer uma pergunta. Quem responder corretamente leva a nota máxima. Quem não souber vai começar o ano com zero". E lançou a questão: "O que é vida?". Todos permaneceram calados por alguns segundos que pareceram intermináveis. "Você", disse apontando para mim."Venha aqui na frente e responda", desafiou-me.


Sem alternativa, subi no tablado de madeira onde ficava a mesa dos professores em nível mais alto, e improvisei. "Vida é isso", disse abrindo os braços, inspirando oxigênio, enchendo os pulmões de ar ao máximo. Surpreso com a resposta, Teixeira sorriu e me deu nota dez pela 'criatividade'. Em seguida, ensinou: "Vida é um conjunto de funções que resistem à morte". A frase eu nunca mais esqueci. Mas agora, quase 50 anos depois, reaprendi: para resistir, antes de mais nada, é preciso respirar.


*Mehane Albuquerque é jornalista, escritora, fotógrafa e editora adjunta do TODA PALAVRA

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Incrível essa história da vida!

Ao mesmo tempo que nos choca com a frieza do ser humano,nesse caso a quem escolheu trabalhar com vidas.

Por outro lado ainda temos a esperança por anjos que nos cercam

E pela simplicidade de viver .

Respirar é um conjunto .

Coisas simples se tornam essenciais quando perdemos.

Porém Jesus mostra que sempre podemos dar nosso melhor.

Espero de coração,que a senhora esteja bem.


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