FIFA tem dificuldade de reconhecer recorde de Marta
Ana Laura Braccialli
Um ano depois da Copa do Mundo da França, com os avanços gloriosos do futebol feminino no Brasil e no mundo, fomos surpreendidos com um tweet da conta da FIFA sobre Copas do Mundo, dando feliz aniversário ao alemão Miroslav Klose pelos 42 anos. Mas, o que acabou chamando mais atenção, foi a conta enaltecendo o fato de ele ser considerado o maior artilheiro de todas as copas.
Esse tweet reascendeu um debate pelo simples fato de que esse número foi superado pela Marta Vieira da Silva no mundial de 2019 na França. Com 17 gols anotados, a rainha é a maior artilheira da história de todas as copas, tendo esse debate inflamado e exposto o machismo nada velado sobre o protagonismo feminismo no esporte. Mostra o silêncio de muitos homens sobre o feito e nos faz questionar: qual a dificuldade de enaltecer, no sentido de igualdade, mais essa conquista de Marta?
A FIFA poderia ter feito diferente, e o que me pareceu é que eles iam fazer diferente. Há um ano atrás, na coletiva de encerramento da Copa do Mundo, Gianni Infantino, presidente da FIFA, falou:
"Tenho certeza que o ano que acabamos de iniciar mudará para sempre a maneira como o futebol feminino é visto(...) Não tenho a menor dúvida que aqueles que não estão familiarizados com o futebol feminino, se assombrarão com o quão longe ele chegou e o nível incrivelmente alto".
Quando questionada por várias pessoas, a FIFA se pronunciou dizendo que existem duas contas oficiais: a da World Cup (sem gênero nenhum), e a Women's World Cup, que é onde, provavelmente, eles acham que deveria ser enaltecido o feito de Marta. Uma conta que, obviamente, tem muito menos seguidores, pois trata de uma competição que chegou anos e anos depois, onde a primeira edição de Copa do Mundo foi em 1991, enquanto a masculina já ocorria desde 1930. Eles vão continuar levando esse atraso adiante?
A Fifa diz, categoricamente, que Klose é o maior artilheiro da Copa do Mundo masculina, e Marta é a maior artilheira da Copa do Mundo feminina. Assim, não respondem o que a gente chamaria de overall. Eles não vêem essa necessidade de falar sobre o geral. Mas, até o dia 18 de junho de 2019, quando se falava de artilharia das copas, nunca era abordado a questão do gênero.
Um grande exemplo disso é o caso da Larissa Latynina, ginasta soviética, recordista de medalhas até as olimpíadas de 2016. Quando Michael Phelps, nadador americano, passou a Larissa, ninguém se referiu a ele como o recordista entre os atletas homens. Muito pelo contrário, ele virou o melhor medalhista na história das olimpíadas. Ponto! Então, porque colocar o gênero na frente da Marta?
E eu não estou falando só da Marta, não. É de toda conquista alcançada por mulheres. Quando você faz uma pesquisa no Google, sobre feitos de mulheres, seja qual for a conquista, sempre vem com “a mulher”, e não com “A que fez isso”, “A que fez aquilo”. Nós não queremos ser melhores, nós queremos ser iguais. Chega a ser triste, em pleno 2020, ainda ter que explicar isso.
Porém, há algumas maneiras diferentes de abordar o assunto. Um deles é o argumento meramente técnico. Nesse aspecto, posso até entender como aceitáveis as considerações de que as Copas do Mundo, ou os torneios masculinos e femininos de futebol, são dois universos competitivos em estágios diferentes, o que é absolutamente normal. Com toda repressão, com todo o preconceito com as mulheres ao longo da história, é normal que ainda se tenha menos profissionalismo, menos ligas profissionais, menos mercado e, naturalmente, nas copas em si, maiores abismos técnicos e competitivos nas seleções. E daí, pode se argumentar, que ao longo de uma competição como a Copa do Mundo, a atleta ou o atleta, tanto feminino quanto masculino, possua níveis de dificuldades maiores ou menores para realizar seus feitos dentro de campo, tal como para atingir determinadas marcas individuais.
Só que, se pararmos para observar o universo do esporte como um todo, será possível visualizar que em competições de outras modalidades, o normal é que a contagem de títulos (como por exemplo no vôlei ou no basquete), obedeça a separação de gêneros, mas os feitos dos atletas não. Por exemplo, se você perguntar sobre os maiores medalhistas olímpicos, como destaquei acima, você não estará questionando sobre atletas homens ou mulheres, mas sim sobre atletas como um todo.
A minha percepção, é que a discussão sobre o gênero no futebol se deu quando uma mulher passou a ser a maior artilheira, e isso envolve a nossa visão preconceituosa em relação a esse esporte. Então, me parece que essa contagem deve ser feita independente de gênero, tendo a Marta que ser considerada a maior artilheira do evento Copa do Mundo (masculino e feminino).
O mais importante é pensarmos no que queremos construir a partir do esporte. Que sociedade buscamos idealizar?. E para isso, a maneira de compartilhar tais questões, com a separação de gênero explícita, não ajuda em nada. Considerar a Marta a maior artilheira, juntando os feitos de homens e mulheres, é a maneira que temos de sinalizar da forma mais inequívoca, que estamos tratando de futebol e de atletas da maneira mais igual possível. Se não, não estaremos ajudando em nada para a construção de uma sociedade melhor através dessa ferramenta, que é o esporte.
Precisamos que os homens, e até algumas mulheres, quebrem essa casca, esse receio, essa insegurança de dar o protagonismo para as mulheres como elas merecem. Quebrem esse medo de muitos, de ter que tocar em assuntos que envolvam o esporte feminino e de tentar compará-las aos homens.
"Comenta futebol igual homem", "Serenão" (se referindo à Serena Williams), "a Marta é o Pelé de saia". Quase sempre, o preconceito acontece sem que venhamos a perceber. São pequenas doses, através de frases feitas que são transmitidas ao longo de séculos, que vão se consolidando e naturalizando como se fosse um senso comum. Nós começamos a repetir tais olhares como verdade, reforçando assim o preconceito que está presente na nossa comunidade. E não é demérito você querer que a Marta não seja comparada com o Pelé, muito pelo contrário. Mas a Marta é a Marta. Seis vezes eleita a melhor jogadora do mundo. A maior jogadora de futebol de todos os tempos!
Vamos dar esse protagonismo para as mulheres.
Comments