Gatos e teorias da conspiração - um manifesto contra o sequestro da subjetividade coletiva
Por Railane Borges
Desde pequena eu ouvia todo mundo dizendo que gatos tinham sete vidas. Ficava agachada no chão de terra batida lá de casa com os cotovelos apoiados no joelho e o olhar fixo nos telhados. Em uma dessas semanas buscando respostas, vi o mesmo gato tentar sete vezes a mesma manobra auspiciosa no beiral do terraço da dona Dita. Em cada uma delas, ele caiu. Finalmente na sétima, fechou os olhos pela última vez.

“É verdade!”- sussurrei baixo a mim mesma, estarrecida.
Naquela idade ainda pensava que testemunhar alguma coisa servia para afirmar determinada hipótese. Ninguém nunca tinha gritado ‘método científico’ na minha cara antes dos vinte e tantos anos.
Vai ver por isso colecionei todas as simpatias de jornal que vovó mandava aos domingos, apesar de não terem me ajudado a reaver um amor sequer, nem curado as enfermidades da mente pelas quais eu suplicava diariamente por solução, enquanto buscava com uma vizinha, sementes de romã para colocar dentro de pequenos saquinhos de tecido costurados à mão.
As simpatias não fizeram com que eu ganhasse rifas, acertasse na loteria, ou me deram sorte de qualquer tipo (mesmo carregando para cima e para baixo aquele maldito trevo que ainda hoje tenho entre as folhas de um caderno antigo)
O que eu ganhei, acreditando naquelas receitas, nas possibilidades mágicas de resoluções de problemas, foi um sentimento positivo que eu carrego comigo até hoje.
Essas lembranças efêmeras, tão presentes na minha juventude, por muito tempo preencheram a minha necessidade de acreditar que existia algo além do que eu podia ver ou fazer para impactar a minha realidade.
Mas a verdade é que progredir neste mundo sempre foi algo realmente difícil de conseguir. E a assunção de que o oposto da ignorância é justamente aceitar que não sabemos nada, demorou. Demandou muito trabalho. E a superação de muitas frustrações. É difícil aceitar que algumas perguntas simplesmente ainda não podem ser respondidas pela raça humana.
Uma de minhas melhores amigas e eu, durante o ensino fundamental, brincávamos de repetir seguidas vezes a frase:
“Se o nada não era nada, como ele se tornou tudo?”
Para nós era de uma extrema necessidade debater o que existia antes da primeira explosão. Assim como ainda fazem, incansavelmente as pessoas da ciência. Aceitar que ao adentrar o mar de gente fora de nossas casas, temos apenas o tamanho da nossa estatura, (diferente de como nos vemos imensos em nossas mentes através de nossas vistas, centradas em nós mesmos de dentro para fora) é um processo devastador que para uns se traduz no estabelecimento da humildade como parâmetro de jornada e para outras, na arrogância da perpetuação da crença de que são especiais, mais especiais que um grão de areia, por exemplo.
Superiores a nada e parte de tudo.
Outra coisa que não me tinham dito: que tudo que podia acontecer, aconteceria, em algum lugar, num determinado momento quase sempre imprevisível. As possibilidades são infinitas. Sequer me explicaram que as pessoas mais distantes da compreensão total do mistério da vida nomeariam estes eventos como ‘sorte’, ‘azar’, ‘destino’ ou ‘fé’.
Enquanto crescia fui percebendo que as pessoas aceitavam respostas fáceis, que as acalmassem em seus questionamentos e agonias, mesmo que essas respostas não tivessem qualquer esteio na realidade. Foi então que pela primeira vez me arrebatou a triste certeza de que os gatos não tinham sete vidas.
Também desde pequena que mamãe me grita que ajeite o vôo, que restabeleça contato com o fio de alguma meada, que não me deixe levar uma correnteza grande de palavras para onde o rumo da prosa ia antes e… Vê só, escorreu outra vez pela cabeceira do rio. Acho que ela não se deu conta de que tinha uma filha inconclusiva, papel inato de todo escrevivente. Aversa a certezas, fui ajeitando as subjetividades com calma no desconhecido. Não chegar era assumir que não há chegada possível, e para mim, o mistério caia mais que bem.
Torquato me ensinou cedo sobre os minúsculos viventes entre rinocerontes. Me reconheço e falho e insisto! E insistir é também a minha insígnia.
Qual não foi minha surpresa nos últimos meses quando muitos de meus amigos, os mais curiosos, depois de ter seus perfis online vasculhados e empilhados nos menores detalhes ao menor sinal de compartilhamento pelos mecanismos do algoritmo, começaram a propagar teorias conspiratórias antigas, que se expressavam como lendas da nossa infância, como simples respostas para perguntas complexas, embarcando de forma aleatória e absolutamente sugerida, em um onda de desinformação e manipulação.
Se naquele tempo parecia algo interessante que uma criança se perguntasse o que existia antes do nada, um adulto aceitar qualquer resposta sensacionalista para suprir uma lacuna existencial já não recai da mesma maneira sobre a sociedade.
De repente uma profusão de pessoas está certa de que sociedades alienígenas foram responsáveis por grandes feitos humanos, de que o homem nunca pisou na lua, de que é possível quebrar as leis da Física e viajar para o passado, ou mesmo insistindo que a terra seja plana e que vacinas são perigosas!
No limiar entre ciência e misticismo, um planejamento meticuloso nos encaminha para uma nova realidade. Esta, à parte de tudo que eu sempre me esforcei para compreender, erguida por verdadeiros engenheiros do caos, como me ensinou Giuliano Da Empoli.
Se há marco zero suficiente para nos proteger do universo das fake news, dos bilionários, coachs e teorias conspiratórias, não sei. Mas sei que: tudo que pode acontecer, acontecerá. Se decidirmos usar uma lupa otimista ou realista para olhar, não importa, isso não irá alterar nosso resultado.
Fujam do algorítimo, da venda de retina, do brain rot de todo dia. Fujam da falsa impressão de que é necessário saber tudo, comentar tudo, se ‘posicionar’ à respeito de qualquer coisa que aconteça.
Talvez se começássemos de novo pela simples observação dos gatos nos beirais dos telhados…
E pelos objetos milenares de conhecimento mais utilizados pela humanidade para compartilhar estudos e descobertas, além de arte! Aquele assomado de papéis recheados de palavras, lembram-se?
Os livros!
Em desuso nos últimos tempos e esquecidos por 73% dos brasileiros em 2024. As mesmas pessoas que diariamente consomem conteúdo em redes sociais e páginas de fofoca controlados por pessoas com um único objetivo em comum:
Afetar você.
*Railane Borges é atriz e cineasta
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Artigo de Eduardo Vasco
Como é bom mergulhar em um passado comum a muitos de nós, os mitos e lendas, e permear com a realidade que buscamos esquecer com estas fantasias!
O mais grave é que querem nos obrigar a sonhar os sonhos que não são nossos!!!!
Obrigado pelo texto!
Ah! Comer manga com leite não faz mais mal!!!
Mais um belo texto! Cada dia mais encantado em ler tanta coisa boa no meio desse mar de coisas ruins! Ainda bem que não faço parte dos 73% que esqueceram dos livros… Ainda gosto do conteúdo, do peso e do cheiro dos livros! Ler coisas boas me encanta! Parabéns mais uma vez pelo texto!
Bruno Plastina
Tão objetiva e clara ao falar dos subjetivos e obscuros
A crônica me fez refletir em como cada dia mais o futuro, que um dia queríamos e sonhávamos com ele, não nos permite mais sonhar ou acreditar no que simplesmente não tem explicação (ainda?) e que esta tudo bem. Não podemos mais simplesmente acreditar no que não se tem resposta e que talvez não tenha resposta e nem posicionamento para tal crença ou situação. Apenas crer e sonhar não basta para aqueles que necessitam de uma resposta para que sua existência confirmada e sua voz seja ouvida (porque ela tem que ser ouvida?). Dai que surgem as respostas malucas que estão sendo formuladas por aqueles que querem usar da fragilidade da mente humana ou por aqueles que só querem que…
Belíssima!!
Seguimos adentrando em pleno XXI com as sete ondas puladas em todas as viradas dos anos no calendário gregoriano. 🙂