Gramacho: a cidade do lixo a 30 km de Copacabana

Por Caio Barretto Briso, Agência Pública
Tábua por tábua, o barraco de Nina saiu do chão, e pedaços de madeira ganharam o nome de casa. Quando chove, o aguaceiro atravessa o teto e molha tudo. Esse mês já foram três dias seguidos à luz de velas, sem eletricidade. Água nas pias e privada, só três dias por semana, e há ruas que nunca foram abastecidas. Saneamento básico é uma promessa a mais no esgoto a céu aberto dessa terra de gente esquecida. Nina se mudou para o barraco pouco tempo após fecharem o lixão.

Com seis filhos e três netos, sonha com uma casa de alvenaria, mas o sonho está empoeirado junto com os sacos de cimento largados no seu quintal, pois não há dinheiro para mais material de construção. Ou ela compra arroz e feijão ou encomenda tijolos, areia, argamassa.
Arina da Cunha Lopes, a Nina, é uma mulher negra de 42 anos nascida numa família de catadores de Jardim Gramacho, Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro. Sua casa fica a 30 km de Copacabana, mas entre a vida que ela vive e a vida de quem mora perto do mar há uma distância oceânica. Por 34 anos, Nina viu caminhões da empresa de limpeza da capital entupirem seu bairro com resíduos sólidos de quase sete milhões de cariocas.
O lugar tornou-se uma cidade do lixo, com uma montanha de 60 metros de altura de rejeitos, uma favela que se formou ao redor – onde Nina mora – e a maior indústria de reciclagem do Brasil com cerca de dois mil catadores. Nina, sua família e seus vizinhos viviam até 2012 das 9 mil toneladas de material levados todos os dias por 600 caminhões da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), fora outros incontáveis caminhões de construção civil, lixo hospitalar e comida estragada.
Quando os veículos chegavam carregados de resíduos sólidos, os catadores já sabiam à distância o que vinha em cada um. Urubus e ratos também – eles se misturavam entre as mulheres e homens, a maioria mulheres negras, todos em busca de sobrevivência. O lixo era vertido sobre a montanha tóxica, um lugar chamado até hoje de “rampa” e de onde se avista, lá do alto, a imensa e poluída Baía de Guanabara.
A realidade dos catadores de Gramacho foi exibida para o mundo todo no documentário “Lixo Extraordinário”, do artista plástico carioca Vik Muniz, que não venceu a estatueta, mas chegou ao Oscar em 2011. O filme mostra o cotidiano dos trabalhadores enquanto eles ajudam a transformar parte do lixo recolhido em obras de arte.
Apenas um ano após o lançamento do longa metragem, o aterro foi fechado para sempre – mas seu cheiro e até um certo calor do metano, um dos gases que agravam o efeito estufa, ainda se sente no ar, com tanta matéria orgânica apodrecendo debaixo da terra.

Miséria e fome
O maior lixão da América Latina foi fechado às pressas pelo prefeito Eduardo Paes, então no MDB, um homem hábil em propaganda política, apenas duas semanas antes do início da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, em junho de 2012. Disse ele naquele dia que “o Rio não vai mais admitir violências contra o meio ambiente”.
No mundo ideal, trancar a porta do aterro com um cadeado, como fez Paes (que reassumiu a prefeitura em 2021), seria o começo de uma gestão moderna de resíduos, com o fechamento de todos os lixões do país e a urbanização total do bairro – uma questão urgente e global em um planeta com 8 bilhões de pessoas, cada uma produzindo uma média superior a 1 quilo de resíduos por dia. Mas no mundo real de Gramacho, as leis da vida são duras e impuseram fome, miséria e medo desde o fechamento do aterro, há quase dez anos.
Da noite para o dia, catadores perderam sua única fonte de renda e caíram em um limbo do qual nunca conseguiram sair, levando junto maridos e esposas, filhos e netos, tias e sobrinhos – gente que ouviu promessas que nunca saíram dos sonhos, como cursos de capacitação, urbanização, centro esportivo, escola, hospital, plantio de árvores, apartamentos sociais. Uma caminhada pelas ruas de terra do bairro revela que aumentou o número de lixões clandestinos em terrenos próximos – um deles a poucos minutos da portaria principal do antigo aterro. O movimento de caminhões é constante, mas eles carregam principalmente lixo de construção, com pouco ou nenhum reciclável.
Nina acorda todos os dias antes das 5h. Seu despertador é o galo de um sobrinho que canta na casa ao lado. Outros parentes, tios e primos também moram no mesmo terreno — todos eram catadores ou dependiam em casa do dinheiro que vinha do lixão. Ela prepara o café e se arruma na penumbra do amanhecer – mas sua casa é escura mesmo com sol de meio-dia, pela posição nos fundos do terreno e pelas janelas muito pequenas. Nina vai caminhando para a Coopergramacho, atravessando toda a Rua Tocantins, onde ela mora, até um dos acessos da comunidade, onde trabalha como vice-presidente da cooperativa de reciclagem, uma das 18 que ainda existem na região, cada uma em situação pior que a outra.
Ela é uma liderança tanto na comunidade quanto na cooperativa. Às 6h30 já está varrendo o chão no trabalho. Uma das promessas não cumpridas pelo poder público é um galpão para os cooperativados armazenarem os recicláveis. Todo o material fica ao relento, sob sol e chuva, o que deprecia os valores. Cada cooperativa é responsável por conseguir e buscar o próprio material – seja em condomínios ricos do Leblon, na zona sul do Rio, ou em empresas privadas do Centro.

Enterrando ouro
“Fecharam nosso lixão e passaram a mandar os caminhões para Seropédica [município da Baixada Fluminense a cerca de 50 km de Gramacho], onde tudo é aterrado, inclusive material de reciclagem. Por que não trazem pra cá como prometeram? A Comlurb só permite que a gente vá buscar material com nosso caminhão uma vez por mês. Por que não podemos ir todos os dias? Estão enterrando ouro lá, e a gente aqui passando fome. O que as pessoas ainda não entendem é que lixo é ouro”, afirma Nina, enquanto os primeiros dos sete trabalhadores da cooperativa chegam para o serviço.
“Se a Comlurb desse mais material pra gente, poderíamos empregar pelo menos 100 mulheres. Hoje só tenho três batedeiras (pessoas que separam os recicláveis na esteira) e quatro homens. A promessa era que, com o fechamento do aterro, as cooperativas seriam fortalecidas. A gente mexia no lixo, mas era um bom trabalho, porque tínhamos valor como trabalhador. Qual é o valor que a gente tem agora?”
Domício Moreira de Sousa, de 62 anos, é um catador triste que trabalha desde os 15 anos com reciclagem. Sentado em uma cadeira na porta de seu barraco enquanto esperava o almoço ficar pronto, ele é bem mais jovem do que aparenta seu rosto talhado pelo sol e pela labuta. O homem está bravo: trabalhou das 4h às 14h, conseguiu apenas R$ 25. Com esse dinheiro, o pai de 11 filhos consegue alimentar dez pessoas – R$ 2,5 por dia para cada uma.
Ele acompanha desde garoto as mudanças do destino do lixo do Rio de Janeiro: da estrada Rio-Petrópolis para a Chacrinha, em Duque de Caxias, antes de abrirem em 1974 o lixão de Jardim Gramacho. Ele e sua família foram seguindo o caminho do lixo, trabalhando e morando em cada um desses lugares, pois é no lixo que sabem transformar fome em barriga cheia. Mas desde que o aterro foi fechado, há dez anos, a renda familiar caiu 75% – antes eram no mínimo R$ 100 por dia.
O que terá hoje para o almoço, Seu Domício? “Filé mignon”, ele responde em tom de chacota, mas sem perder o mau humor, provocando riso nos filhos e netos. O menu daquele dia era ovo, arroz e feijão — filé mignon é como eles passaram a chamar ovo na pandemia, uma piada com a falta de carne na dieta. O comum é comerem isso — quando o dinheiro sobra, compram carne de frango.
“Tenho várias marcas no corpo, eu chamo de ‘cicatrizes do lixo’, principalmente por causa do vidro quebrado, que corta nossa carne. Uma vez um pedaço de ferro no meio do lixo atravessou meu pé. Continuei trabalhando até o fim do dia, e no dia seguinte também”, recorda.
Vida de 'luxo'
Sua filha Elaine Sousa da Silva, de 32 anos, também trabalhou na rampa de Gramacho. Conta que naquele tempo levava “vida de luxo”: tinham dinheiro para comprar casa, moto, carro. De vez em quando ela gosta de ir escondida até o local onde o lixo era despejado, e começava a corrida de mulheres e homens pelos materiais. Conta que, por cima da montanha de lixo coberta por grama, nasceram várias árvores frutíferas, como goiaba, maracujá, coco e maxixe. Depois que acabou a rampa, diz Elaine, muita gente está passando fome, pois era o ganha-pão de todo dia.
“Era uma vida de luxo. Minha mãe era cheia de anel nos dedos. A gente achava dólar, achava ouro, encontrava até o que não estava procurando. Lembro de uma senhora de cabelos brancos que achou um terço de reza feito de ouro e o vendeu por R$ 600”, Elaine conta, sem saber o que é trabalhar há anos, sem espaço em nenhuma cooperativa, sem perspectivas. “Só a garrafa de óleo está custando R$ 10. O botijão de gás, R$ 100. Tudo o que ganhamos de uma igreja como cesta básica de Natal já acabou. O que falta pra gente é trabalho.”

Nina tem um papel social importante na comunidade: ela é quem articula os vizinhos na luta por melhorias. Organizou uma vaquinha de R$ 1,8 mil, por exemplo, para trocar a fiação da rede elétrica após um curto-circuito: cada morador deu apenas R$ 20. Nina é um ponto de equilíbrio em Jardim Gramacho, sempre atenta ao que foi prometido e ao que foi entregue como melhoria.
“Mostraram uma maquete pra gente com prédios e árvores, parecia até outro lugar de tão bonito. Dez anos depois, nem asfaltada essa rua foi. Cadê o hospital, cadê o centro esportivo com quadras pras crianças? Cadê a escola nova, que só aqui em casa tenho duas crianças e não consigo vaga pra elas? Aqui é uma terra sem oportunidade. Muitas pessoas saem de Gramacho para trabalhar com lixo em outros lugares, como no bairro do Caju, ou catando latinha na rua. Saímos para trabalhar e nem temos com quem deixar nossos filhos. Muitas crianças estão sem aula, o que obriga as mães a ficarem em casa com os filhos — ou irmãos mais velhos, também crianças ainda.”
Nas ruas sem asfalto de Jardim Gramacho, a poeira sobe quando passam caminhões de lixo que, clandestinamente, continuam a despejar resíduos sólidos em terrenos dominados por traficantes de drogas — na ausência de prefeito e governador, são os donos do lugar. As autoridades sabem que há dezenas de lixões clandestinos, a polícia sabe, mas é