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Lembre-se de não esquecer

Atualizado: 20 de nov.

Railane Borges*


Há uma frase muito famosa do Nietzsche que diz: “Abençoados são os esquecidos, pois tiram o melhor proveito de seus equívocos”. Por muito tempo, acossada pelo constrangimento de meus erros e decisões ruins, concordei em silêncio com essa afirmação do genial filósofo. Foi apenas depois de muitos anos de reflexão que resolvi que já era passada a hora de gritar aos quatro ventos que não poderia discordar mais.

Escrevo essas palavras em uma noite chuvosa de uma semana especialmente cinzenta, na qual tento com esforço lembrar quem sou e de onde venho. Sei que, neste momento, em que todos temos sido bombardeados por tantas probabilidades difíceis para um futuro de céu claro, não devo ser a única.


Costumo dizer aos meus filhos que o mundo está sempre tentando nos distrair de nós mesmos e que é preciso, de vez em quando, tomar de volta as rédeas, reorientando nossos caminhos e fortalecendo nossos propósitos. Neste processo há uma ferramenta muito importante da qual devemos fazer uso: a memória.


Por mais que estejamos todos vivendo o frenesi de uma positividade tóxica, que nos obriga a ser fantoches constantes de uma suposta felicidade que devemos ostentar em nossos murais, por mais que estejamos viciados na descarga fácil de dopamina à disposição dos dedos, em um universo infestado por vídeos engraçados de pegadinhas superficiais, memes e gatinhos fofos, é preciso ver além.


Um estudo científico publicado na revista “Nature” em 2015 certificou que temos mais facilidade para nos recordar de eventos ruins que bons; e isto não deve de forma alguma ser visto como algo negativo. Trata-se de uma manobra de nosso DNA para nos tornar mais capazes de perseverar enquanto espécie.


É a memória a grande responsável pelo sentimento de pertencimento e comunidade; e é através dela que acessamos o grande vão geracional do qual todos somos filhos.


Não é, portanto, uma coincidência que a dominação de tantos grupos étnicos, em sua maioria compostos por homens brancos autointitulados “civilizados”, tenha se prevalecido desse pressuposto para roubar das pessoas escravizadas seu direito ao nome dado por seus pais, a religião de seus iguais ou as práticas culturais de suas terras.


Um ataque à memória é capaz de bombardear o centro de nossos afetos, desumanizando os sentidos e embaralhando os saberes.


Arrisco dizer que a memória seja o mais perto de uma justiça biológica embutida em nós, posta em ação desde os primeiros momentos de vida. A memória não permite mergulhos individuais, mas carrega junto de si a força de todos que vieram antes. Em fatos concretos recordados ou na leitura genética de sua assinatura, podem-se ver tantas jornadas.... Incluindo erros e acertos.


É preciso um retorno urgente ao feio. É preciso compreender a necessidade de atravessar com igual respeito e profundidade os momentos ruins, os dias difíceis, o tédio.


É preciso que tenhamos consciência do conjunto de sentimentos com os quais um ser humano deve lidar durante sua vida, para que não nos tornemos apenas uma projeção digital de nossos sentidos. Por mais que essa seja uma daquelas coisas mais fáceis ditas, que feitas, é necessário que tentemos.


O medo é importante. A tristeza é importante. A vergonha é importante. Sentir essas coisas nos torna capazes de fazer escolhas melhores. Ajudam a nossa progressão como seres humanos. A chave está em compreender que o passado é inofensivo, pois não te alcança mais.


Como a saudade em outro extremo é sentir falta de algo que já passou, também os piores momentos passam. Assim, visitar o jardim da minha infância não garante as mesmas flores e cheiros de antes. Ir até a casa onde passei tantos anos não fará com que eu me depare com a minha vó à beira do seu fogão mágico de onde saíram todas as coisas gostosas que nutriram meu corpo de hoje.


Mas ainda assim, este lugar no passado é capaz de ancorar o meu presente e me fazer exatamente quem sou.


Em 2024, um de meus filmes favoritos completou vinte anos e é impossível não o mencionar quando o assunto é memória. Michel Gondry, munido de sua genialidade para temas subjetivos, traz para a sétima arte essa discussão de uma maneira que somente ele poderia fazer. Em ‘brilho eterno de uma mente sem lembranças’ a personagem de Kate Winslet, Clementine Kruczynski, de forma impulsiva após um término conturbado, resolve apagar Joel Barish de sua memória. Posteriormente, movido pela tristeza de ter sido apagado, ele toma a mesma decisão. A coisa muda de figura quando Joel, dentro de sua mente, se arrepende do procedimento ao perceber, enquanto revivia cada momento, que, tanto as memórias boas, quanto as ruins da relação dos dois, formavam o extraordinário universo de um casal que jamais deveria ter se separado. Na luta para não esquecer sua amada, está uma das mais lindas dramédias já filmadas. Este filme não é apenas memorável. É imperdível.


Muitas coisas estão pondo nossa memória em risco atualmente. Uma sequência de vídeos curtos por mais de uma hora e, ao fim, não resta nenhuma chance que você se lembre de nada do que tenha assistido. Há aplicativos que o fazem de forma deliberada para te manter conectado, gerando para meia dúzia de executivos e bilionários um lucro insuperável.


Recentemente, vazaram e-mails da diretoria do TikTok em que eles se organizavam para construção de conteúdos visando crianças, a quem o serviço sequer deveria ser autorizado. Estudos recentes demonstraram que, para cérebros em formação, os danos são permanentes.


Será que a dificuldade de concentração dessas gerações está sendo programada de forma ingênua, sem um direcionamento claro para o caos? Ou existe uma programação proposital para que esse caos se estabeleça? Teorias da conspiração à parte, algo que certamente deve ser levado em consideração é que, sem memória, nos tornamos vulneráveis a qualquer vento que bata. Cuidem de suas memórias, cuidem de suas crianças. Isto é tudo que temos, afinal. O tesouro da humanidade.


*Railane Borges é atriz e cineasta

7 Comments


Bela e necessária reflexão… objetiva, que conversa “olhando nos olhos” do leitor…

Sou grato pela oportunidade de ler isso…

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Como de hábito, mais um belo e reflexivo texto.😍

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raylana
Nov 17

Que belo texto e reflexão . 💜🙏🏻

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Ana Lobo
Ana Lobo
Nov 17

Lindo texto!

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Texto lindo de um significado enorme!!

Amei cada parágrafo.... Parabéns!!!

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