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Letalidade policial e violência de Estado

Waldeck Carneiro*


Recentemente, o STF promoveu audiência pública, presidida pelo ministro Edson Fachin, sobre a letalidade policial no RJ. Foi um desdobramento da ADPF 635, acolhida pelo STF, que proíbe operações policiais em favelas durante a pandemia, exceto em situações excepcionais, comunicadas ao MP e por ele acompanhadas.

Como expositor convidado pelo STF, ressaltei, de início, a tradição autoritária do Estado brasileiro: o longo e hediondo período da escravatura; a ditadura civil-militar (1964-1985), que prendeu arbitrariamente, exilou, torturou e matou; e o próprio tema da audiência: diferentes e recorrentes formas de violência praticadas pelo Estado no RJ, especialmente através de seu aparelho repressivo, em favelas e demais comunidades populares. Induzida a fazer a fracassada “guerra ao tráfico”, a Polícia Militar do Rio de Janeiro se transformou na força de segurança pública que, possivelmente, é uma das que mais mata e que mais morre em todo o mundo.

Entre as formas de violência de Estado mais praticadas, destacam-se as mortes decorrentes das ações policiais, sejam aquelas perpetradas em confronto, sejam aquelas cometidas ao arrepio da lei, verdadeiras execuções sumárias. Além das mortes, há outros atos violentos durante as operações policiais: prisões arbitrárias, em geral de jovens pobres e negros, muitas baseadas em reconhecimentos faciais apressados ou improvisados; desaparecimentos forçados de corpos, prática que atrapalha a investigação dos homicídios; adulteração de cenas de crime, o que dificulta, quando não impede, a responsabilização dos autores; ocupações frequentes em favelas, colocando em risco, muitas vezes em horário escolar, famílias, profissionais e crianças inocentes; residências utilizadas indevidamente como plataformas de tiro ou vasculhadas sem mandado judicial; ameaças, maus tratos e constrangimentos a moradores, entre outras práticas violentas.

A tradição autoritária do Estado, que se tornou um componente do processo de formação da sociedade brasileira, sempre teve um destinatário específico: segmentos excluídos da população, desprovidos do direito de acesso a bens econômicos e culturais coletivamente produzidos, ou seja, indivíduos e comunidades que já se encontram social e economicamente vulnerabilizados, desprotegidos em relação aos direitos e esquecidos pelas políticas públicas.

Os dados sobre o fenômeno são assombrosos: segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), de cada 100 mortes violentas intencionais no Brasil, no ano de 2018, 10,8 foram provocadas pela polícia. No RJ, esse indicador é mais que o dobro: 22,8 mortes! Ressalte-se que a maior parte das vítimas são pessoas negras (75,4%), como aponta o mesmo relatório. No RJ, desde o começo da pandemia, dados do Instituto de Segurança Pública revelam que a letalidade policial, de março a maio de 2020, aumentou 28,35%, se comparado com o mesmo período em 2019, sendo que os indicadores nacionais apontam que a letalidade policial, no primeiro semestre de 2020, cresceu 7% em relação aos primeiros seis meses de 2019. Ou seja, o indicador, no RJ, foi quase quatro vezes superior à taxa nacional.

Daí a importância da ADPF 635, especialmente no tocante à proibição do uso de helicópteros blindados, “caveirões aéreos”, usados como plataformas de tiro em operações policiais; à preservação dos vestígios das cenas de crime; à proibição de remover indevidamente corpos de vítimas; à necessidade de documentar provas periciais, laudos, exames de necropsia, de modo a assegurar investigações independentes, rápidas, eficazes, completas, imparciais. Ademais, o STF teve a sensibilidade de priorizar casos em que crianças figuram como vítimas. De acordo com o Instituto Fogo Cruzado, no RJ, nos últimos cinco anos, 100 crianças foram baleadas (média de 20 por ano), sendo que 76% foram atingidas por balas perdidas.

Contrariamente à vertente que critica a ADPF 635, sob o argumento de que favoreceria o crime, os dados não apontam nessa direção: pesquisas do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (UFF) mostram que, com o advento da citada ADPF, além da redução de 75,5% de mortes decorrentes de operações policiais em favelas (comparado com a média das taxas no período de 2007 a 2019), houve também redução de 47,7% dos crimes contra a vida e de 39% dos crimes contra o patrimônio (comparado com a média das taxas naquele mesmo período). Paradoxalmente, durante o período da intervenção federal militar na segurança pública do RJ, em 2018, os indicadores de redução da violência foram frustrantes: houve aumento de 53% dos confrontos armados durante a vigência da intervenção federal e de 36,3% nas mortes decorrentes de intervenções policiais.

Como a audiência pública tinha o propósito de apontar saídas efetivas para o problema da letalidade policial, destaco: a) adotar planos estadual e municipais de redução da violência de Estado; b) combater o racismo institucional; c) priorizar o enfrentamento às desigualdades, que se agravaram com a pandemia; d) investir na valorização da carreira e na formação continuada de policiais, bem como na infraestrutura de planejamento, de tecnologia e de inteligência das polícias.

Tiro, porrada e bomba não conterão a violência! Ao contrário, tendem a agravá-la. O Estado, suas instituições e seus agentes não podem agir na lógica do “olho por olho, dente por dente”. Precisam usar a inteligência, respeitar a lei e promover a igualdade.


*Waldeck Carneiro é deputado estadual pelo PT e professor da UFF

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