Lucchesi usa metáfora yanomami em discurso contra devastação do planeta

Um discurso contundente em defesa do meio ambiente, da ciência e da democracia marcou, nesta sexta-feira, 11, a posse de Marco Lucchesi para o seu terceiro mandato como presidente da Academia Brasileira de Letras. Depois de ter sido o mais jovem presidente, eleito pela primeira vez em 2017, ele agora se tornou também, após a última eleição, o segundo a permanecer mais tempo no cargo, atrás apenas de Austregésilo de Athayde.
Diante das cadeiras vazias do Salão Nobre do Petit Trianon, em posse transmitida pela internet, Marco Lucchesi, ao subir à tribuna, fez um minuto de silêncio pelas meninas Emily Victoria, 4 anos, e Rebeca Beatriz, 7 anos, mortas semana passada em um tiroteio em Duque de Caxias. “Enquanto não houver culpados somos todos réus, e a elas dedico essas palavras”, manifestou o acadêmico iniciando o discurso de posse.
“O ano de 2020 foi de tempestade perfeita: a eclosão da pandemia, a negação da realidade, a politização sanitária e a democracia hipertensa. Ouvimos frases impensáveis, dignas de uma antologia do horror. Houve quem temesse a morte de CNPJ’s, indiferente à morte dos CPF’s. Mero eufemismo cartorial que considera a vida humana apêndice da economia, commodity da indústria, carvão para queimar. A metáfora ignea aliás devastou partes da Amazônia e do Pantanal e a pandemia incidiu sobre os povos indígenas, sitiados pelo fogo e pelo garimpo dos comedores de florestas. O debate desceu a níveis iníquos e não recomendáveis. Promoveu a ignomínia do racismo, a agressão ao estado laico e delírios golpistas”, relacionou.
Diante de tais fatos, “as instituições culturais não podem calar sua voz”, afirmou, justificando o tom veemente e indignado. Lucchesi dedicou, a seguir, a maior parte do discurso à denúncia da devastação ambiental do planeta como preço imposto à humanidade pelas leis de mercado irrefreáveis.
“A grande aceleração abriu feridas no sistema Terra. O projeto de crescimento ilimitado requer sua paga. Tornou-se impossível rolar a dívida. A era geológica do capital, assim chamado no Capitaloceno [“Capitaloceno, a era da barbárie”, livro de Ricardo Iglesias], hipotecou todo o futuro. Cessaram as nuvens, perdemos o azul, ausentes o sol e a lua, fugiram as estrelas”, descreveu.
Entre várias citações literárias, Lucchesi dedicou especial atenção a uma: A queda do céu, do líder yanomami Davi Kopenawa, que recebeu no ano passado o Right Livelihood Award, conhecido como Prêmio Nobel Alternativo, junto a Greta Thunberg e outros dois ativistas. A obra relata a crença yanomami de que o céu é sustentado pela floresta. Se ela deixasse de existir, o céu então desabaria.
“A abóbada celeste caiu. O céu desabou. Um vazio descomunal, vazio como o céu de Pirandello, maior que a angústia de Pacal. Não foi por falta de aviso. Davi Kopenawa Yanomami disse mil vezes que se não impedíssemos o desmatamento, a queda seria fatal e irreversível. Foi justamente o que se passou. Cometemos um crime ominoso. Perdemos a floresta. Perdemos Gaia.”
Trazendo a metáfora yanomami para o campo da ficção, Lucchesi passou a construir o enredo de um romance pós-apocalíptico para descrever o futuro do planeta sob as condições atuais de destruição do meio ambiente:
“Estamos em 2050 em Devastópolis, entre o deserto do Pantanal e a savana amazônica. O tempo das catástrofes passou, estamos no pós-apocalipse. Rios de amônia e mercúrio correm pesados. Não há peixes. A água potável acabou, substituída por um líquido industrial reciclado. Calor tremendo. Só os répteis se multiplicam. A flora limita-se a mangues de gigogas. As poucas árvores, desprovidas de beleza, seguem cansadas. Os pássaros perderam suas virtudes, ápteros e afônicos. A humanidade não chega a 4 bilhões e a expectativa de vida é de 52 anos.”
As imagens de devastação criadas pelo ficcionista, porém, são fundamentadas pelo ensaísta (ele também é poeta e tradutor) ao estabelecer as relações de causa e efeito do seu enredo:
“O ciclo das pandemias, de que a atual, Sars Cov 2, foi a antessala, abriu a Caixa de Pandora. Os negacionistas do futuro seguem coerentes. Insistem na inocência do carbono (...). A exploração da Lua e de Marte após o esgotamento da Terra. Padecem, todos, o não saber que o DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] do século 22 registra como ‘agnosite’ a doença de quem ignora e se enaltece da própria ignorância. Defendem a platitude da Terra e das mentes. A idolatria das leis de mercado com indisfarçável antipatia a Keynes, considerado um líder perigoso e revolucionário. Uma junta de teólogos governa o mosaico do antigo ecúmeno, reduzido a um longo arquipélago de biomas devastados.
De volta ao papel das instituições culturais nos tempos pré-apocalípticos que vivemos hoje, Lucchesi deu o tom que deseja:
“E que se tornem mais coloridas e diversas, mediante a presença de afrodescendentes e povos originários. Assumir a diferença significa ampliar a emancipação, combater o racismo e democratizar a República. Não queremos a entropia do Mesmo: somos todos brasileiros. A nostalgia do Mais não recua. O futuro cresce no espelho. De rosto misterioso e seios fartos. Inteiramente feminino. Começam as dores do parto. Sentimos desde já a sua beleza", afirmou o presidente da ABL.
Foram empossados também o secretário-geral, Merval Pereira; primeiro-secretário, Antônio Torres; segundo-secretário, Edmar Bacha; e tesoureiro, José Murilo de Carvalho.
O discurso completo de Marco Lucchesi, precedido de um relatório de atividades da ABL este ano apresentado pelo acadêmico e jornalista Merval Pereira, pode ser visto na íntegra em https://youtu.be/WjuoYjRmMEg.