Nomen
- Mehane Albuquerque
- 22 de mar.
- 3 min de leitura
Por Railane Borges
Nada existe sem um nome. É ele que cria significado e dá identidade às coisas. Por detrás de uma designação vem a reboque véus e cortinas de milênios de vidas e histórias, da peregrinação das pessoas pelos territórios, suas origens, relações e negociações.

As coisas inertes jamais conhecerão o concretismo em suas denominações. As formas, o som.
Mas se você dá nome a uma criatura viva, estará se dispondo ao universo dos afetos. A partir daí, carregará consigo a força rara do que nos faz singulares. Do que nos difere das máquinas e constrói nosso propósito. Um simples nome, com sobrenome ou não, e viramos parte de um jogo ancestral por cujo tabuleiro tantas peças se deslocaram.
A cada um é dada uma consciência individual capaz de provocar sentimentos. Há pouco a ciência dizia através de algumas pesquisas que os traumas das nossas famílias ficavam marcados em nosso DNA como um lembrete da nossa missão: sobreviver, perseverar, continuar a nossa saga.
Um epíteto é sempre o primeiro passo na direção do contato com outro de nós. Tão logo percebidos, muitos desde o tamanho de um botão a nadar no mar infinito de um útero, já recebem uma graça. Se o carimbo da espécie é a linguagem, o nome é a primeira expressão de nossa própria existência.
Com isso, é possível enxergar — usando uma pitada de subjetividade e duas porções de metalinguagem crua, através do prisma do karma, da coincidência ou de um autor superior soberano alterando vidas como um roteirista em seu milésimo “vale este” — a incrível reviravolta na história de um homem, de nome desconhecido, a quem proibiram a identidade recebida de sua mãe.
Sequestrado ainda criança, fora sempre chamado por:
‘Epicteto’
Um nome que não era nome. Cujo significado, “adquirido”, não dizia mais que reduzir sua existência à temporária condição de escravizado na qual se encontrava.
Aquele homem era muito mais que isso. E tornou isso um pequeno detalhe sobre si, etimologicamente falando. O planejamento de sua resposta veio pela subversão. Pelo conhecimento.
Ele se tornou um filósofo de base estoica, que, depois de sua manumissão, abriu uma escola muito respeitada, onde compartilhava lições sobre como a virtude é o único bem da vida, devendo ser acessada através da conformidade com a natureza, usando a razão.
Aqui, Epicteto chama a humanidade de volta à razão invocando o senso de responsabilidade.
E temos aí, marcado na história por um de seus alunos, posteriormente historiador de Alexandre , O grande — um belíssimo introdutor da ética na sociedade.
O pontapé de todos os outros nomes que viriam depois até que entendêssemos a necessidade de enxergar a importância de respeitar os nomes das coisas. Há um elo palpável entre nomes e apagamento. Nomes e resistência. Nomes e as guerras de narrativas. Nomes e memória.
O ataque aos nomes, às raízes, é o que subjuga populações inteiras, impedindo novos Epictetos de crescerem e suas linhagens de cumprirem com seu propósito. Os genocidas são ladrões de histórias. Trabalham com o apagamento completo do que não compreendem, do que discordam ou acham inferior. Eles vêm pelos nomes dos seus filhos, dos seus pais, dos seus irmãos e de muitos que vivem ao seu redor.
Uma trégua mentirosa em um país distante, uma filha que suprime judicialmente o sobrenome de seu pai, uma vitória institucional para inibir violências específicas pela ADPF 635, são movimentos extremamente importantes.
Em síntese, parafraseando Vivian Jenna Wilson em sua justiça ancestral: “Vamos chamar um figo de figo e uma saudação nazista do que é. Aquilo foi definitivamente uma saudação nazista”.
As lutas pelos nomes detrás de muitos rostos são capazes de contar por si só boa parte da história do mundo.
Eu me chamo Railane. Conforme descobri, deriva do Hebraico Rayyan, que quer dizer ‘renascida’. Isso deve significar alguma coisa e acreditar nisso me faz sentir um pouco como Epicteto em busca de propósito e razoabilidade na caminhada.
*Railane Borgesé atriz e cineasta
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