Nosso sonho não vai terminar

Por Railane Borges
Dizem que lar é onde nosso coração faz morada e que, assim sendo, se sentir em casa depende menos da casa que das pessoas ao seu lado onde quer que você esteja, mesmo que tanto lugares quanto pessoas possam mudar radicalmente ao longo de anos. O hábito gera um sentimento de familiaridade que se firma em nós para bem ou mal. A rua em que cresci avezou-me sobre este sentimento, não apenas no que tange ao convívio humano, mas também geograficamente.
Enquanto crescia percebi que isso importava nas relações. No meu primeiro emprego, quando perguntaram a um conhecido onde ele morava, ouvi ele responder: “Do outro lado da poça” – ao mesmo tempo em que desarvorava os ombros. Esse era um termo que se usava quando se vivia no Rio, porém longe da Zona Sul. A referência sempre foram os cariocas. “Os abastados.”
A poça era a Baía de Guanabara. Como se a resposta não fosse suficiente, o interlocutor sempre ia mais adiante: “Mas é NITERÓI ou é SÃO GONÇALO?” com uma entonação aguda ao dizer “São Gonçalo”, um desdém específico no franzir de lábios identificável apenas se você estivesse atento.
Os desabastados, descobri ali, éramos nós.
Para a maioria dos gonçalenses, esse era um atestado de sua pobreza. Uma demarcação de sua condição. São Gonçalo é a minha terra natal. Território vasto onde se distribuem cerca de cinco distritos e uns 100 bairros ou mais entre aqueles reconhecidos oficialmente ou apenas pela população local. Lá o lazer é curto, o deslocamento difícil, a violência desafia e a corrupção impera. Eu nasci onde a maioria de nós nasceu. No Alcântara, onde costumamos dizer que o sol queima mais. Eu nunca estive no Saara, mas sou capaz de acreditar que as duas regiões possam ter temperaturas similares nos dias de verão (ao menos as noites no deserto tinham fama de serem frescas). Alcântara é um sobrenome Ibérico dado pelos colonizadores, com origem árabe e que significa “PONTE DE PEDRA” e isso até faria sentido, não fosse a sonoridade estrangeira descabida. Para todo o lado havia concreto e, ao centro, um viaduto.
Lá pelos meus oito anos, uma dupla gonçalense conseguiu explodir no cenário nacional me trazendo uma sensação que me descia como os gols do Brasil nas Copas do Mundo. Como se por um segundo deixássemos de ser invisíveis para sermos vistos por todos. Até então a palavra “IDENTITÁRIA” não tinha sido usada à exaustão. E cada vez que eu ligava o rádio e escutava: “Sabe, tchurururu, estou louco pra te ver”, me sentia representada. Um sorrisinho se alargava em meu rosto e eu pensava que, depois de Claudinho e Buchecha, ninguém mais precisaria se sentir envergonhado em dizer de onde vinha. Para uma menina que passou a vida na entrada do Engenho Pequeno, conhecer a história de dois amigos de infância no Salgueiro que fizeram o que fizeram era tudo o que precisava para manter a esperança de sucesso na vida.
Nos anos 2000, na Fazenda dos Mineiros, outros dois amigos sintetizaram o sentimento de toda a nossa cidade com um hino inesquecível de funk das antigas: “Moro em São Gonçalo, gosto de Niterói”. Ao menos na minha inocência, eu acreditava que morar em Niterói significava algum tipo de vitória. Às vezes, passava duas horas em conduções com amigos para ir até a praia mais bonita que conheci. Itacoatiara. Falava-se tanto nela...
Chegando lá era impossível não se deparar com uma inscrição marcante em seu cartão postal. Pintada a mão no Costão, a frase dizia: “FORA HAOLE”. Eu nem sabia o que era ‘haole’, então sequer entendi que era conosco. Mas era.
Quando chegou a vez da minha família “mudar de vida”, comemoramos com toda a rua, com nossos vizinhos, nossos amigos, com muita emoção e comida boa. E aquele dia, antes do caminhão buscar nossas coisas, foi a última vez de muitas coisas, mas principalmente a última vez que estivemos em comunidade.
Hoje, vivendo há 14 anos em uma rua em que mal conheço meus vizinhos sisudos, homens de posses e desconfiados, que entram e saem de seus portões torcendo para que seus olhos não se cruzem com os de ninguém, entendo mais do que nunca que dinheiro é só papel e que ‘lar’ é onde estão os nossos. O discurso elitista nunca passou pelo meu portão. Penso que para as pessoas aqui, o objetivo seja o Leblon, e que eles não fazem ideia do que significa o que desejam (nem que nesse cenário seriam eles os haoles). E penso também que a saudade é um lugar para onde não podemos voltar.
*Railane Borges é atriz e cineasta
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Que texto maravilhoso, parabens Railane!!!!
O sentimento é o mesmo quando nossas raízes, mesmo plantadas na mesma cidade, estão em bairros menos "famosos", como o meu Fonseca.
Me identifiquei com esse texto.
Senti representada sobre tudo que penso. Sensacional Railane 👏🏼👏🏼👏🏼
Lindo!!! Morei muitos anos em São Gonçalo e sua crônica me tocou profundamente.
Esse espírito de comunidade, "um por todos, todos por um"...vivi isso no condomínio onde morei.
Vida longa ãs suas crônicas!!! Amo!!!
Que texto lindo! Também sou de São Gonçalo e me senti muito contemplada.
Quando era adolescente eu tinha horror de Icaraí. Eu me sentia um peixe fora d'água...
O tempo passou e também vim pra Niterói, mas procurei um lugar no qual eu me sentisse pertencente. Primeiro morei no Centro. Quase São Gonçalo...
Depois, "melhorei de vida" e fui para Região Oceânica, mas fui para um lugar que "nem parece Niterói". Agora moro num paraíso que parece uma cidadezinha do interior, Jardim Imbuí, mais conhecido como Tibau, por conta da ponte que liga a Acúrcio Torres, quase chegando na Prainha de Piratininga.