Nova ofensiva do obscurantismo contra a ciência brasileira
Por Waldeck Carneiro**
Neste momento em que a pandemia do coronavírus, maior tragédia da humanidade desde a segunda guerra mundial, desafia ainda mais a ciência e escancara a importância de se investir em pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação, o governo obscurantista de Jair Bolsonaro desfecha novo ataque à atividade científica e, em particular, aos programas de pós-graduação, celeiros do essencial da produção acadêmica brasileira, em todas as áreas do conhecimento.
Com efeito, desde o início de seu deplorável governo, o atual presidente da República vem atacando sucessivamente as universidades públicas e os institutos federais de ensino e pesquisa. Demitiu sumariamente o Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) por discordar de seu robusto e bem fundamentando relatório sobre o avanço do desmatamento na Amazônia brasileira, que revelava a tragédia da política ambiental dos governos Temer e Bolsonaro. De forma arbitrária e sem embasamento, o governo Bolsonaro desautorizou estudos internacionalmente reconhecidos, feitos pela Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), sobre o fenômeno da dependência química no Brasil, pois seus dados e análises contrariavam a perspectiva criminalizadora e punitivista com que o governo Bolsonaro prefere abordar o tema. Não satisfeito, Bolsonaro interveio no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), causando graves danos ao planejamento do Censo 2020, no afã de evitar que esse indispensável instrumento para que o Brasil conheça a si mesmo, inclusive os seus recônditos mais profundos, pudesse conter indicadores do crescimento da desigualdade social e do aumento da pobreza, fenômenos constatáveis, a olho nu, nos últimos quatro anos.
Lamentável acidente da história política brasileira, o bolsonarismo não cessou a sua sanha persecutória contra a ciência. O próprio presidente e os dois despreparados ministros da educação que teve até então identificam as universidades como alvos a serem destruídos: cortam seus recursos, depreciam as atividades acadêmicas que realizam, estupram a autonomia universitária, especialmente no tocante à nomeação de dirigentes universitários que não tiveram o endosso de suas respectivas comunidades acadêmicas. No Rio de Janeiro, aliás, são ainda recentes as experiências do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES, onde o atual diretor-geral perdeu a eleição, mas foi nomeado por Bolsonaro); da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, onde o atual reitor, nomeado por Bolsonaro, sequer disputou a eleição) e do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET-RJ, onde o diretor-geral eleito não foi nomeado até hoje, sendo preterido por interventores designados por Bolsonaro). Em suma, as instituições federais de ensino superior, cuja entidade pública mantenedora é, a rigor, o próprio Ministério da Educação (MEC), têm neste órgão, por mais incrível que pareça, seu principal algoz: que as ataca, que as calunia, que as desrespeita, recorrentemente.
Eis que agora o governo Bolsonaro aplica novo e duro golpe contra o mundo da ciência e da pesquisa no Brasil. Refiro-me a duas portarias, contemporâneas, ambas publicadas no mês de março de 2020. A primeira, proveniente do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (Portaria MCTIC nº 1.122/20), é da lavra do próprio Ministro Marcos Pontes, que, a propósito, como astronauta, sabe que a terra não é plana. Mas o Ministro, que sempre dá a impressão, com o devido trocadilho, de estar "perdido no espaço", ao definir, no referido ato, as áreas de pesquisa prioritárias de seu Ministério, para o período 2020-2023, não hesitou em excluir as ciências humanas e sociais. Ou seja, educação, sociologia, ciências políticas, economia, ciências da informação, serviço social, filosofia, ciências da linguagem, antropologia, entre outras, estão banidas das prioridades de fomento orientadas pelo MCTIC, tanto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) quanto à Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). O governo Bolsonaro decide, portanto, que os estudos sobre desigualdade, relações de poder, desenvolvimento econômico, exclusão social, alfabetização, entre outras temáticas, não merecem constar como foco das linhas de investimento à ciência, no âmbito do MCTIC e de suas principais agências de fomento.
Quase simultaneamente, o governo Bolsonaro edita outra Portaria, esta oriunda da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), principal agência de fomento à pesquisa no âmbito do MEC e órgão federal responsável pela formulação, implementação e avaliação da política de pós-graduação no Brasil. Pois bem, com o advento da Portaria CAPES nº 34/20, rompe-se com a tradição de décadas de diálogo entre a CAPES e a comunidade científica, em especial com as representações dos programas de pós-graduação. Esse diálogo permitiu, ao longo dos últimos cinquenta anos, quando a pós-graduação no Brasil nasceu e se consolidou, que as várias diretrizes que estruturaram o setor fossem debatidas e, muitas vezes, pactuadas entre a CAPES e os programas de pós-graduação. Agora, não mais! Menos de um mês depois de ter enviado um ofício-circular às coordenações dos programas de pós-graduação, informando a cota de bolsas a que fariam jus, em nível de mestrado e/ou de doutorado, a aludida Portaria promove um corte de até 50% de bolsas, sobretudo em programas da chamada demanda social, o que inclui cursos de mestrado e de doutorado em fase de consolidação, com notas 3, 4 e 5, na escala de avaliação do órgão, cuja nota máxima é 7. As universidades e seus programas de pós-graduação já tinham se planejado, com base na informação oficial divulgada pela própria CAPES, e novos bolsistas já estavam sendo convocados para a assinatura de seus termos de compromisso.
De quebra, a Portaria CAPES nº 34/20 revoga o regulamento do Programa de Residência Pedagógica e do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), deixando absolutamente no limbo esses dispositivos de fomento, que são muito importantes no processo de formação de professores em nível superior, nos diferentes cursos de licenciatura.
É bem verdade que não chega a surpreender a edição dessas portarias. Afinal, trata-se de um governo em que o presidente e vários de seus ministros destilam ódio à ciência e à verdade científica. O Ministério da Educação no governo Bolsonaro, desde a sua primeira formação, está em campanha contra o magistério, categoria que os detratores oficiais tentam criminalizar. Nessa linha, avançam contra a escola, buscando despi-la de seu caráter educador para que assuma papel meramente instrucional, numa tentativa de excluir o pensamento crítico do contexto escolar, que associam a temas como direitos humanos, cidadania, diversidade, gênero e outros sumariamente banidos pelo "index" bolsonarista. Apostam na escola de pensamento único, na escola de uma só doutrina, que apresentam, de maneira cabotina, como "escola sem partido", aproveitando-se do ambiente de criminalização da política e do óbvio consenso de que a escola não é lugar de proselitismo partidário, religioso ou de qualquer natureza.
Como professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense e, neste momento da conjuntura política, acumulando essas posições acadêmicas com o exercício do mandato parlamentar na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, onde ocupo a presidência da Comissão de Ciência e Tecnologia, não poderia deixar passar sob silêncio mais esse ataque covarde e calculado do governo Bolsonaro contra a ciência brasileira. No momento em que países perdem milhares de vidas face ao maior desafio da minha geração e o mundo, mesmo nesta quarta revolução tecnológica em que vivemos, enfrenta enormes dificuldades para derrotar este inimigo invisível, sorrateiro e letal, devemos apoiar, encorajar e homenagear profissionais da saúde e cientistas, sem os quais a pandemia do coronavírus jamais será debelada. No Brasil, não pode ser diferente. Ciência e existência, como ensinou Álvaro Vieira Pinto, que Bolsonaro nem desconfia quem seja, precisam estar visceralmente ligadas. Afinal, como ressaltou Bertolt Brecht, a quem o obscurantismo bolsonarista também ignora, a principal finalidade da ciência é "aliviar a miséria da existência humana".
** Também publicado em "O Cafezinho", em 27/03/20
* Waldeck Carneiro é Professor da UFF e Deputado Estadual (PT-RJ)
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