O carvão e o equilíbrio da matriz energética
O que um país como o Brasil, com mais de 50 por cento de sua matriz energética proveniente de fontes hídricas, além de sol e ventos abundantes, com alto potencial de desenvolvimento de energias limpas - como a solar e a eólica -, tem a aprender com o maior produtor mundial de carvão: a Rússia?
A resposta para essa pergunta pode estar a Leste dos Montes Urais, mais precisamente na vasta região da Sibéria, a 14 mil quilômetros de distância do Brasil.
Kemerovo, província de Kuzbass, no Oeste da Sibéria, é uma cidade do tamanho de Niterói, com pouco mais de 500 mil habitantes. Pelas avenidas largas e arborizadas a vida segue um fluxo tranquilo, organizado e gélido nos meses mais frios.
Porém, sob a neve branca que cobre a região durante boa parte do ano esconde-se uma densa massa negra no subsolo, onde estão cerca de 40 por cento de todas as reservas mundiais de carvão - a energia que alimentou a Revolução Industrial, assim como as caldeiras dos trens e navios que empurraram o mundo no maior surto de desenvolvimento já experimentado pela humanidade, nos dois últimos séculos.
Estive em Kemerovo, participando de um tour de jornalistas dos países BRICS promovido pela TV BRICS, da Rússia, com apoio da Fundação Gorchakov, e pude ver de perto como essa velha fonte de energia ainda é a alternativa mais econômica para aquecer e movimentar grande parte da população e da indústria mundial.
Houve um tempo em que o carvão parecia condenado à obsolescência, superado pela exploração do petróleo, que impulsionou freneticamente a economia mundial no século passado. No entanto, a crise dos países produtores de 1973 elevou o preço do petróleo a níveis estratosféricos e fez o mundo se voltar novamente para o carvão como uma das opções energéticas mais baratas e fartamente disponível. Só na Rússia, o maior exportador mundial, estima-se que existam reservas de carvão para mais 400 ou até 500 anos.
Em Kemerovo, o carvão e seus trabalhadores são as principais atrações da cidade. Existe um museu - Krásnaia Gorka - onde a história da exploração do minério é detalhadamente contada por cima e por baixo do solo, onde escavações feitas na rocha negra reproduzem o interior de uma mina de carvão e mostram como é feito o trabalho debaixo da terra. Os mineiros, por sinal, são valorizados como heróis e ganharam até um majestoso monumento às margens do rio Tom.
Visitamos, ao norte da região de Kemerovo, uma mina de carvão a céu aberto, cujas reservas chegam a 220 milhões de toneladas, com previsão de se manter produtiva por mais 30 anos. Foi na mina Chernigovskiy onde encontrei algumas das respostas sobre o que o Brasil e outros países têm a aprender com a Rússia a respeito dessa fonte de energia.
A Rússia possui uma matriz energética bastante diversificada e, mesmo sendo o maior produtor mundial de carvão, essa fonte responde por apenas 15 por cento do consumo do país. Todo o resto da produção é exportada, como explica o cubano Sergey Brilev, presidente da Associação Energia Global, de Kemerovo, com quem conversei no campo de exploração de Chernigovskiy.
“A realidade energética russa é verdadeiramente impressionante. Esse país, sendo um dos maiores produtores de carvão do mundo, não consome muito carvão. A matriz energética russa é impensável. Mais ou menos vinte por cento do setor hidro, vinte por cento nuclear, apenas quinze por cento de carvão e o resto de gás natural. Nesse país não faz muito sol tipicamente, não tem muito vento. Por isso que a energia alternativa aqui vai se desenvolvendo, mas a uma velocidade menor do que no resto da Europa.
A Rússia está no grupo dos três maiores produtores de carvão do planeta, com reservas para muitos anos. Esta mina, em particular, trinta anos; as reservas totais do país, quatrocentos ou quinhentos anos. Não é exagero: quatro, zero, zero; cinco, zero, zero. De quatrocentos a quinhentos anos.
Paradoxalmente, este país não consome muito carvão. Rússia exporta carvão para a China e outros países. Repito que somente quinze por cento da matriz energética russa está representada pelo carvão. Contudo, o carvão tem futuro, por duas razões: A primeira é que, investindo dinheiro em filtros, sim, se pode queimar carvão limpamente. Um exemplo claro é o Japão. O Japão consume muitíssimo carvão. Os japoneses se encantam pela limpeza e se usa carvão no Japão. Primeira razão. A segunda razão é que esse material aqui, o carvão, existe tanto, tanto, que quem sabe, se não se usa para gerar energia, se vai usar na indústria química, na petroquímica, na indústria química à base de carvão”, disse Brilev
No caso brasileiro, 56,8 por cento da nossa matriz elétrica vem das hidrelétricas; 12,8 por cento, do gás natural; 10,6 por cento, eólica; 8,2 por cento, biomassa; 3,9 por cento de carvão e derivados; 3 por cento de derivados de petróleo; 2,5 por cento de energia solar; e 2,2 por cento de energia nuclear.
Brilev, que já morou no Uruguai e conhece bem a usina hidrelétrica de Itaipu, defende que o Brasil deve apostar cada vez mais na diversificação, com ênfase nas fontes eólica e solar, mas também na integração com os demais países sul-americanos, com os quais possui fronteira e pode intercambiar energia de fontes diversas exploradas no continente, como das hidroelétricas e de gás natural.
“A América Latina é um continente verdadeiramente interessante do ponto de vista energético. Uma das peculiaridades da América Latina é que a matriz energética do continente tem uma parte não só importante, mas determinante da fonte hidro. Uma das polêmicas dos últimos dois anos foi que na Comissão Europeia, no Parlamento Europeu se disse que a água das centrais hidrelétricas produz C.O.2 também. Não é verdade. Estudos realizados na Rússia e no Brasil provaram, com base acadêmica, que isso não é verdade.
Ao mesmo tempo, os países são diferentes. Na Argentina, o gás natural é a base. No Brasil, mais, digamos, Itaipu, mais Itaipu e mais Itaipu.
Falemos primeiro da causa da estiagem. Muitos colegas europeus dizem, automaticamente, que a estiagem é provocada pelas mudanças climáticas, que, por sua parte, são provocadas pelas indústrias. Quando se analisa isso com mais profundidade, chega-se à conclusão de que a escassez na América do Sul e na África é mais provocada por um fenômeno chamado La Ninha, que é um fenômeno do Oceano Pacífico. Esse não é um fenômeno de aquecimento reverso, ou seja, a causa de La Ninha não é a indústria. Eu creio que esse é um detalhe sumamente importante. Cabe repetir para se entender o que está acontecendo.
Agora, o que pode ajudar o Brasil a neutralizar as consequências da escassez são duas coisas. Primeiro que no Brasil há sol e há vento. Então, por favor, a parte eólica, como não? Se há economia nisso, como não?
E também o meu sonho pessoal seria uma integração muito mais séria na América do Sul. Países como Argentina e Brasil têm gás natural, mas até agora, apesar da existência do Mercosul, não há um mercado comum. Pensando na existência do Mercosul, falemos de um exemplo clássico: Itaipu. Tomemos o exemplo de Itaipu. Itaipu está na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Itaipu pode vender eletricidade tanto ao Brasil como ao Paraguai. Embora exista toda uma polêmica sobre a que preço os brasileiros compram a energia dos paraguaios. Mas Itaipu não pode vender eletricidade à Argentina. Tanto Brasil, como Argentina e como o Paraguai estão no Mercosul, mas o mercado de eletricidade não é internacional, nem no Mercosul. Assim, eu digo aos meus amigos sul americanos que cheguem a um entendimento melhor entre si, para que funcionem os projetos de integração, não só de integração financeira, mas uma integração para as pessoas”, destacou Brilev.
Embora minoritário na matriz energética brasileira, o carvão é um combustível indispensável em alguns setores da economia do país, como o da siderurgia. Foi também na mina de Chernigovskiy que busquei respostas para as preocupações ambientais em relação à exploração e ao uso do carvão, não só no Brasil, mas em outras regiões que talvez necessitem ainda mais do minério, por se tratar de uma das fontes energéticas mais baratas que existem e um valioso aliado no combate à pobreza ao subdesenvolvimento em várias partes do mundo.
Entre as maiores preocupações dos ambientalistas, hoje, está a emissão de CO2, capaz de produzir o chamado efeito estufa e contribuir para as mudanças climáticas que estão no centro das discussões globais sobre o aquecimento do planeta.
No Japão, país citado por Sergey Brilev como exemplo no tratamento dado pelas fábricas que utilizam o carvão para evitar emissões de CO2, a indústria investiu pesadamente em filtros capazes de eliminar - ou reduzir a níveis aceitáveis - os poluentes lançados na atmosfera durante os processos industriais.
“Existe futuro para a América Latina? Sim, existe, e o futuro é o hidrogênio verde. Faz sol, faz vento, assim que, geograficamente falando, objetivamente falando, países como Argentina, Uruguai, parcialmente o Brasil, e Chile, têm um futuro já. A questão é que uma tonelada de hidrogênio verde, hoje, custa de três ponto cinco a seis vezes mais do que uma tonelada de hidrogênio azul, produzido à base de gás natural. Assim é a economia. Procura-se mudanças, mas por hora é assim. A produção de hidrogênio verde na América do Sul está, sim, se desenvolvendo. Mas interessantemente, o hidrogênio verde que se produz na América do Sul é mais exportado para a Europa do que usado na América do Sul. Por quê? Porque os preços europeus contêm subsídios, subsídios super importantes. Os europeus compram com seus subsídios e aí, sim, isso funciona. Se usassem na América do Sul o hidrogênio verde produzido na própria América do Sul, isso significaria, pelo menos no momento, que os preços da eletricidade iriam subir.
Não confundamos conceitos. Existem certas coisas que são muito lindas do ponto de vista ambiental, mas que, por enquanto, do ponto de vista dos interesses do consumidor, em especial do consumidor dos países em desenvolvimento, dos países do Sul Global, não funcionam”, enfatizou Sergey Brilev.
A outra preocupação dos ambientalistas é em relação aos efeitos prejudiciais que a exploração inadequada do carvão pode provocar ao meio-ambiente, sobretudo na contaminação dos recursos hídricos.
No Brasil, após a inauguração da Companhia Siderúrgica Nacional, nos anos 40 do século 20, o Sul do estado de Santa Catarina intensificou drasticamente a sua exploração de carvão e se tornou palco de um grave desastre ambiental. Era de lá que saía o combustível para alimentar e manter acesos os alto-fornos da primeira siderúrgica de grande porte em operação no país.
Os volumes do minério extraídos da terra aumentaram significativamente a partir de 1967 com a entrada em operação de uma Dragline Marion 7.800, uma gigantesca escavadeira usada na lavra do carvão, com 23 metros cúbicos de caçamba e uma lança que chegava a 70 metros de comprimento.
Em pouco tempo a região de Siderópolis passou a apresentar uma paisagem lunar, com crateras e montes estéreis espalhados em uma área de vários quilômetros quadrados completamente nua, sem vegetação e sem vida. O resultado dessa exploração ecologicamente irresponsável, num tempo em que não havia praticamente uma legislação ambiental no Brasil, foi a contaminação das águas da bacia do rio Urussanga, que ainda hoje apresenta condições preocupantes.
Na mina de Chernigovskiy a preocupação com a preservação dos recursos hídricos é um dos pontos mais importantes, dentro de uma visão ambientalmente responsável demonstrada pela empresa. Toda produção e beneficiamento do carvão são feitos de forma sustentável em uma fábrica inaugurada em 1976. A mineradora adota um sistema de reuso dos grandes volumes de água necessários para beneficiar o carvão, evitando, assim, a contaminação de rios e do lençol freático.
Chernigovskiy é reconhecido como um centro industrial inovador, sendo a única mineradora russa capaz de processar dois tipos diferentes de carvão simultaneamente - o carvão de coque e o carvão a vapor.
Mas é, também, um exemplo de que o carvão, cujas imensas reservas ainda são capazes de contribuir intensamente para o desenvolvimento global, pode ser explorado de forma ambientalmente responsável e sustentável.
Não faz muitos anos, nós ouvíamos essa bela música através de vitrolas que reproduziam os antigos discos de vinil.
As bolachas foram rapidamente substituídas pelos compact discs - os CDs - e eu confesso que lamento muito ter me desfeito, na época, da minha coleção particular de discos de vinil, que hoje voltaram a ser ouvidos e disputam espaço com com o streaming e os modernos tocadores de música digitais.
A história da queda e da redenção atual dos velhos discos de vinil, em contraste com a evolução digital da indústria fonográfica, mostra que as novas e as antigas tecnologias podem - e devem - coexistir. Principalmente em um setor econômico tão importante quanto o de energia.
Sem negar a importância da evolução das novas fontes de energia limpa, o carvão - um dos recursos energéticos mais baratos que existem - pode, simultaneamente, contribuir não só por um mundo ambientalmente responsável, mas também econômica e socialmente sustentável, capaz de redimir milhões de pessoas ao redor do planeta que ainda vivem sob condições de pobreza e de subdesenvolvimento.
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