O futebol e o narcotráfico na Colômbia - Parte II
O caso dos irmãos Rodríguez Orejuela e suas influências no América de Cali
Por Eduardo Gomes

Dando sequência à série de matérias publicadas sobre as relações existentes entre o futebol e o narcotráfico na Colômbia dos anos 1980-1990, hoje serão aqui problematizados os efeitos desse processo na cidade de Cali. Na publicação da última sexta-feira, de forma mais específica, foram debatidas as possíveis influências e a participação de Pablo Escobar, então principal líder do cartel de Medellín, no mundo futebolístico.
Como explicitado naquela oportunidade, assumo que não sou um especialista em pesquisas sobre as relações do futebol com o narcotráfico na Colômbia (o que, obviamente, não me exime de possíveis críticas sobre esse e qualquer outro texto que venha a desenvolver sobre o tema). Todavia, a partir de uma percepção tida com as leituras já realizadas, jornalísticas ou acadêmicas, sobre a influência de Pablo Escobar no futebol, busquei no primeiro texto problematizar essa relação. Tendo em vista a falta de evidências empíricas em algumas das afirmações escritas sobre a presença desse narcotraficante no esporte, o que obviamente não quer dizer que ele não tenha tido influências nesse campo, procurei relativizar algumas das hipóteses já construídas, mais pela falta de fontes e pelas suposições criadas do que para afirmar se são ou não verdadeiras tais suspeitas.
Entretanto, como também demonstrado nesse primeiro texto, essas relações entre narcotráfico e futebol, notadamente na década de 1980, não se concentraram apenas em Medellín. Em outras importantes cidades do país, como a capital Bogotá e Cali (que será o objeto central da análise de hoje), também ocorreram possíveis ligações entre narcotraficantes e seus principais clubes. E, diferentemente do caso de Escobar, em algumas dessas cidades podemos apontar com maiores evidências como se deu a participação desses narcotraficantes no futebol.
Em Bogotá, por exemplo, temos como destaque a influência do famoso narcotraficante José Gonzalo Rodríguez Gacha, mais conhecido como El Mexicano, que possuiu influências diretas no Millonarios, um dos principais clubes de futebol do país. De acordo com algumas pesquisas (que também precisam ser mais problematizadas e aprofundadas), Gacha teria, junto com outros narcotraficantes, utilizado o clube para lavar parte do dinheiro ganho com o tráfico de drogas, tendo para isso investido na formação do elenco de jogadores que se tornou bicampeão nacional em 1987-1988. Em 2012 o clube lançou, inclusive, a hipótese de abrir mão desses títulos, ato até hoje não efetivado, mas que explicita a repercussão negativa que a possível influência do narcotráfico teve no clube da capital colombiana (ou pelo menos a tentativa, no contexto atual, de se apagar essa memória entendida como negativa para a imagem da agremiação). Todavia, parte da torcida se demonstrou contrária a devolução das conquistas, explicitando o debate que ocorre até os dias atuais no âmbito do Millonarios.
De fato, influências como essas ocorridas no clube Millonarios, não foram incomuns na Colômbia. Poderemos, em outra oportunidade, aprofundar esse caso. Hoje, especificamente, buscarei entender um pouco mais de como se deu a relação existente entre o cartel de Cali, liderado pelos irmãos Gilberto e Miguel Rodríguez Orejuela, e o clube América de Cali.
Atualmente o América de Cali, um dos maiores clubes de futebol da Colômbia, é o atual campeão colombiano, tendo vencido o último torneio disputado em 2019 (com a pandemia do Covid-19, o campeonato nacional do país em 2020 encontra-se paralisado). Depois de passar por um período de extrema dificuldade nessa década, onde esteve por cinco anos jogando na segunda divisão nacional, o clube felizmente está retornando a seus tempos de glória. É válido destacar que os anos turbulentos em que esteve fora da divisão principal, não condizem com o grande América que venceu treze campeonatos colombianos em trinta anos (entre 1979 e 2008), conquistas que o colocam como a terceira equipe com mais títulos nacionais no país (com o título do ano passado, alcançou sua 14ª taça, estando atrás de Millonarios com 15 e Atlético Nacional com 16). Além disso, o clube chegou por quatro vezes na final da Copa Libertadores da América, principal competição continental da América do Sul, tendo alcançado um incrível tri vice-campeonato nos anos de 1985-86-87, além de ser novamente segundo colocado em 1996.
Porém, da mesma maneira que passou por anos difíceis nesses primórdios da década de 2010, antes de 1979, o América nem de longe era a grande equipe que se tornou. Apenas como efeitos de comparação, até 1978, a equipe nunca havia sido campeã colombiana, enquanto seu rival local, o Deportivo Cali, já havia alcançado o título por cinco vezes. Equipes de outros departamentos, como Millonarios e Santa Fé, ambos da capital Bogotá, já haviam ganho a competição por dez e seis vezes, respectivamente.
O “boom” do América de Cali se inicia exatamente no final dos anos 1970, quando o clube se tornou campeão nacional pela primeira vez em 1979. Depois, veio o incrível pentacampeonato nacional de 1982 a 1986, anos em que a equipe também passou a disputar a Libertadores e alcançar as finais onde, por pouco, não se consagrou como a primeira equipe colombiana campeã continental. Coincidência ou não, é nesse período que a influência do cartel de Cali, notadamente representado pelos irmãos Miguel e Gilberto Rodríguez Orejuela, se fez presente no clube. Entretanto, as causas que levaram esses narcotraficantes a chegarem no América se iniciam, na verdade, no rival Deportivo, como nos demonstrar Galvis Ramírez:
Los llamados “dineros calientes” se infiltraron en muchas instituciones del fútbol. Una excepción que vale la pena resaltar es la del Deportivo Cali, que alcanzó a tener entre sus accionistas a uno de los grandes capos del narcotráfico en el mundo, pero que fue liberado gracias a un hombre honesto y con valor civil que dijo “alto” en el momento oportuno. Su nombre: Álex Gorayeb.
Como el Cali (Deportivo) era el único club del fútbol colombiano debidamente organizado con centenares de accionistas, era imposible que prosperara la invasión de uno de los nuevos ricos del fútbol, Gilberto Rodríguez Orejuela, quien apareció en 1972 en el nutrido grupo de ciudadanos que poseían acciones del club verde, pero con intenciones de hacer crecer su dominio a toda la institución. Detrás de él se encontraba su hermano Miguel, quien era el verdadero hincha del fútbol y deseaba hacer una carrera como dirigente.
La actitud valerosa de Gorayeb, confesaron los mismos hermanos Rodríguez Orejuela, los hizo desistir de entrar al Deportivo Cali. Por esta razón, y con bastante resentimiento, decidieron trasladar su inversión al América, rival de plaza de su equipo amado (GALVIS RAMÍREZ, 2008, p. 99).
Como demonstrado acima, tendo em vista a impossibilidade de assumirem um maior protagonismo enquanto acionistas do Deportivo Cali, os irmãos Gilberto e Miguel Rodríguez Orejuela optaram por migrar para o rival América, que até então era menos vitorioso que seu maior adversário citadino. Esse interesse dos irmãos Rodríguez Orejuela pelo futebol, era apenas mais um dos grandes e numerosos negócios que realizaram durante suas trajetórias enquanto narcotraficantes, tendo em muitos momentos utilizado outros ramos comerciais e empresariais para “lavarem dinheiro” ou camuflarem a atuação de ambos no mundo do crime.
Entre as décadas de 1970 e 1990, Gilberto e Miguel Rodríguez Orejuela ficaram conhecidos, além do narcotráfico e de se tornarem acionistas do América de Cali, por terem sido proprietários ou acionistas de vários outros empreendimentos, como os laboratórios Kressford, a rede de drogarias La Rebaja, o Banco dos Trabalhadores, o grupo de emissoras de rádio Radial Colombiano, um banco no Panamá, entre outros.
Podemos afirmar o quanto longe foi a participação dos irmãos Rodríguez Orejuela no futebol do América de Cali, diferente da situação vivida por Pablo Escobar com o Atlético Nacional, pela participação ativa que esses tiveram na vida do clube. Ao se tornarem acionistas do América, clube que até os anos 1970 possuía como principais donos alguns empresários do ramo industrial, Miguel e Gilberto Orejuela passaram a ter vida ativa na agremiação, tendo o primeiro feito parte, a partir de 1980, de uma junta diretiva formada durante o mandato de Giusseppe “Pepino” Sangiovanni, então presidente da instituição.
Como principal nome escolhido para a divulgação da imagem do América para o restante do continente e do mundo, a junta diretiva, que já contava com Miguel Rodríguez Orejuela como um de seus líderes, contou com a figura de Manuel Francisco Becerra. Becerra, advogado que construiu uma carreira política no país, era o nome perfeito e um exemplo de “integridade” que se esperava para a divulgação da imagem do clube. Escreve Galvis Ramírez:
Durante esa época la figura para exhibir en el América era Manuel Francisco Becerra, quien comenzó como asesor jurídico del club y luego fue concejal de Cali, gobernador del Valle del Cauca, representante a la Câmara, senador, ministro de Educación en el gobierno de Virgilio Barco y contralor general de la República (GALVIS RAMÍREZ, 2008, p. 100).
Tendo em vista esse perfil, não foi acidentalmente que optaram pela escolha de Becerra para exercer a função de divulgar a imagem do América nos anos 1980. E, como é possível analisar na ata do clube de 11 de fevereiro de 1987 (apesar de Becerra já participar da junta diretiva do mesmo desde 1982), a escolha do nome de Becerra foi feita diretamente por “Don” Miguel Rodríguez Orejuela, como era conhecido o narcotraficante na agremiação, fato que explicita sua posição atuante e o respeito que possuía no clube:
Don Miguel Rodríguez (Orejuela) le plantea al doctor Manuel Francisco Becerra la forma como a través de su investidura en la Asamblea (departamental) se pronuncie contra los impuestos del espectáculo, pues se consideran elevados. El doctor Bicerra se compromete a que a partir del próximo 10 de marzo puede trabajar “por lo menos dos horas” con la Corporación Deportiva América, en relación con su solicitud (Ata Nº 3 – Corporación Deportiva América, 11 de fevereiro de 1987).
Coincidência ou não, o período em que os irmãos Rodríguez Orejuela se fizeram presentes no clube, o América de Cali alcançou grandes conquistas, como já demonstrado, e movimentou bastante dinheiro, notadamente no investimento em contratações de atletas. Essa era uma das principais formas de se lavar dinheiro oriundo do tráfico de drogas, tal como ocorreu em outros clubes. Nomes como os de Roberto Cabañas, Julio Uribe, Ricardo Gareca, entre outros, foram atuar no clube nos anos 1980 e colaboraram para a conquista do pentacampeonato nacional entre 1982 e 1986, assim como o tri vice-campeonato da Copa Libertadores da América, entre 1985 e 1987. Até mesmo o argentino Diego Armando Maradona, um dos maiores nomes da história do esporte, esteve perto de acertar com o América, não fosse uma proposta recebida do Barcelona da Espanha no mesmo período.
De fato, os anos 1980 marcou o futebol colombiano pela forte presença do narcotráfico. O caso do América de Cali aqui demonstrado, assim como o Millonarios que também citamos ou os clubes de Medellín, Nacional e Independente, tendo ou não a influência direta de Pablo Escobar, são apenas alguns entre os mais famosos. Há indícios que outras equipes grandes, como o Independente Santa Fe, ou menores como Unión Magdalena, onde foi revelado o ídolo nacional Valderrama, também sofreram essa influência “negra” do narcotráfico em seus percursos.
Todavia, é importante também enfatizar que, para muitos dos torcedores, mais importante que saber a procedência do dinheiro investido, tendo em vista que já entendiam o narcotráfico como algo “natural” e interlaçado à realidade do país, o mais importante era festejar as conquistas, independente de como essas foram alcançadas, sendo esse um caminho também seguido por torcedores de clubes em outros países onde ocorreram situações semelhantes, com conquistas ganhas por meios “irregulares” ou “duvidosos”.
O auge dos problemas com a violência no futebol, que podiam ou não serem oriundos do narcotráfico, foi o assassinato do árbitro Álvaro Ortega em 1989. Após um empate sem gols entre o América de Cali e o Atlético Nacional, a equipe da casa, o juiz foi assassinado na cidade de Medellín. Muitas suposições foram criadas sobre essa morte. Devido a não marcação de um pênalti na primeira partida entre as equipes na competição, vencida pelo América por 3×2 em Cali, a hipótese de ter sido o assassinato uma retaliação do cartel de Medellín liderado por Escobar, foi muito difundida. Outros acreditam que o juiz foi assassinado por apostadores. O fato é que, mesmo não havendo uma comprovação exata das causas até os dias atuais, sua morte explicitou como nunca a relação que o futebol possuía nesse período com a violência no país. E, nesse contexto de violência, se encontrava o narcotráfico.
Devido a morte de Álvaro Ortega, o campeonato colombiano de 1989 foi cancelado e terminou sem campeão. Nesse mesmo ano, o Nacional ganhava a primeira Copa Libertadores conquistada na história por um clube da Colômbia (Once Caldas em 2004 e novamente o Nacional em 2016, são os outros títulos conquistados por clubes do país na maior competição da América do Sul). E, de maneira geral, a geração de atletas colombianos, nos mais variados clubes, era considerada por muitos da crítica no período como a melhor da história do país no futebol, o que levaria a seleção nacional a disputar três Copas do Mundo seguidas (1990, 1994 e 1998), fato até então inédito e até hoje único para a Colômbia (a esperança é que a geração atual iguale o fato na Copa de 2022). Mas mesmo com os triunfos, em uma sociedade onde a violência era entendida como algo naturalizado em diversas situações, no futebol não foi diferente, tendo o narcotráfico se instalado em seu seio com força total.
Nesse período, na virada das décadas de 1980 e 1990, o cartel de Cali passava a ser o maior do país, superando o de Medellín, que se enfraqueceria de vez com a morte de Pablo Escobar em 1993. Até 1995, ano em que são capturados, os irmãos Gilberto e Miguel Rodríguez Orejuela continuariam dominando o cenário do narcotráfico internacional na Colômbia. Enquanto isso, o América continuaria como um clube vencedor, tendo desde 1986 (ano do pentacampeonato nacional) ganho mais sete vezes o campeonato nacional e alcançado uma nova final da Copa Libertadores da América, em 1996, quando foi derrotado pelo River Plate
O técnico do grande time do América nos anos 1980, Gabriel Ochoa Uribe, que para muitos é considerado o maior da história do clube, relativiza a atuação dos narcotraficantes no efetivo sucesso que a equipe alcançou no período. Destaca o técnico que a imprensa sempre quis diminuir a “honra” do clube e de suas conquistas e que quando venciam eram taxados como “mafiosos”, enquanto nas derrotas eram tidos como “ruins” (GALVIS RAMÍREZ, 2008, p. 101). Completa afirmando que esses estereótipos ofuscavam, em muitas das vezes, o trabalho árduo que ele e os atletas realizavam a favor do América de Cali e do futebol colombiano.
Muito ainda deve ser investigado sobre essa temática. Nesse pequeno texto, busquei problematizar alguns dos fatores que apontam o porquê do América de Cali ser “acusado” de ter recebido influência de narcotraficantes. A participação de Miguel e Gilberto Rodríguez Orejuela como acionistas do clube, tendo o primeiro se tornado também dirigente da agremiação, explicitam o maior espaço que esses narcotraficantes ocuparam em uma agremiação esportiva, se comparado, por exemplo, com o caso de Pablo Escobar com o Atlético Nacional.
Ao mesmo tempo, declarações como as do treinador Gabriel Ochoa Uribe, sendo essas enviesadas ou não, devem ser problematizadas e investigadas com maior rigor por parte de pesquisadores, historiadores e jornalistas que se debruçam sobre o objeto. E se esse pequeno texto não for profundo o suficiente para efetivar hipóteses concretas sobre os ocorridos, que pelo menos sirva de incentivo para que novos olhares sejam lançados sobre o tema futuramente.
REFERÊNCIAS
GALVIS RAMÍREZ, Alberto. 100 años de fútbol en Colombia. Bogotá: Planeta, 2008.
RUIZ BONILLA, Guillermo. La gran historia del fútbol profesional colombiano. Bogotá: Ediciones Dayscript, 2008.
Texto publicado anteriormente no Blog História(s) do Sport da UFRJ e atualizado para o Jornal Toda Palavra: