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Os 50 anos do tri: entre glórias e saudosismos

Atualizado: 28 de jun. de 2020

Conquista do tricampeonato mundial no México, ocorrida em 1970, completa hoje 50 anos. Ápice do "futebol arte" brasileiro, entretanto, deixa o país refém do estilo na atualidade.


Por Eduardo Gomes

Título do tricampeonato mundial, conquistado em 1970 no México, completa 50 anos hoje. Foto: Reprodução.

Há 50 anos, o Brasil conquistava o mundo do futebol pela terceira vez. Depois dos dois primeiros títulos em 1958 e 1962, com uma seleção marcada pela genialidade de jogadores como Pelé, Garrincha, Didi e companhia, a Copa de 1970 veio para coroar essa geração. Após o fracasso na Copa de 1966 na Inglaterra, ganhar a competição em 1970 havia se tornado uma questão de honra. E a conquista veio, marcando para sempre essa equipe como uma das maiores expoentes do "futebol arte" brasileiro.


Pessoalmente, entendo que as equipes de 1958 e 1962 foram as melhores já formadas na história do selecionado nacional, até por terem conglomerado Garrincha e Pelé no mesmo time (mesmo tendo o rei do futebol se machucado logo no segundo jogo do torneio de 1962, o que fez com que o "anjo das pernas tortas" tomasse as rédeas e guiasse a equipe ao bi no Chile). Entretanto, muitos especialistas, pesquisadores e amantes do futebol, consideram que a equipe do tri em 1970 foi a melhor da história nacional, até por juntar muitos craques dentro de um mesmo escrete (por exemplo, só do meio para frente, além de Pelé, tínhamos Tostão, Jairzinho, Rivellino, Gérson e Paulo Cézar Caju, esse último sempre entrando bem no time quando solicitado).


Os discursos construídos com essa geração, a partir do tricampeonato conquistado, venderam a ideia do Brasil como o "país do futebol" e o verdade praticante do genuíno "futebol arte". Entretanto, por mais que entenda que as glorificações para essa equipe não são só merecidas, como também necessárias, considero que o saudosismo exacerbado pode, também, atrapalhar a realidade atual. Uma coisa é valorizar as glórias e craques do passado, missão que muitas das vezes é esquecida por muitos que cobrem o futebol na atualidade. Outra é querer, sempre, idealizar que os times da atualidade sejam "representantes do futebol arte brasileiro" assim como foram essas equipes do passado. Isso não só representa um anacronismo, do ponto de vista histórico, como também ignora as próprias construções dessas narrativas materializadas socialmente.


A ideia do Brasil ter o melhor futebol arte ou ser o país do futebol, iniciou-se na imprensa a partir dos escritos de grandes nomes, como o jornalista Mario Filho e o intelectual Gilberto Freyre, que pelo menos desde a Copa de 1938, ocorrida na França, defendem uma possível singularidade do Brasil a partir desse esporte. Mesmo sendo uma narrativa construída, essa se materializou com força quando tivemos selecionados que encantaram o mundo e venceram competições mundiais seguidas, como aqueles que alcançaram o tricampeonato entre 1958 e 1970.


O problema, ao meu ver, de valorizarmos de forma exacerbada, pouco crítica e saudosista tais glórias, é que nos períodos posteriores não idealizou-se uma formação de selecionados que representassem o momento em si, pois a narrativa de se formar equipes que "possam voltar aos tempos do futebol arte brasileiro", sempre permeou as convocações dos selecionados nacionais. Foi assim em 1982, 1994, 2002 ou 2006. O discurso estava sempre ali, rondando o imaginário de jogadores, comissão técnica, imprensa e pesquisadores. E muitos se esqueceram que, com o passar do tempo, não bastaria apenas sermos os "herdeiros desse futebol arte", mas sim nos prepararmos para a realidade de cada período histórico vigente.


O início dessas construções remetem à Copa de 1938, quando o cientista social Gilberto Freyre escreveu um artigo no Diário de Pernambuco, intitulado “Foot-ball Mulato”. Nesse pequeno ensaio, o autor explicitou um pouco do olhar que buscava consolidar acerca do futebol brasileiro. Nas palavras de Freyre (1938), em relação a boa participação brasileira na Copa de 1938:

[…] uma das condições dos nossos triunfos, este ano, me parecia a coragem, que afinal tivemos completa, de mandar a Europa um team fortemente afro-brasileiro. Brancos, alguns, é certo; mas grande número, pretalhões bem brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros. […] O novo estilo de jogar foot-ball me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. […] Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas técnicas europeias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto. […] O mulato brasileiro deseuropeisou o foot-ball dando-lhe curvas. […] O estilo mulato, afro-brasileiro, de foot-ball é uma forma de dança dionisíaca.

É notório, nas palavras do intelectual, o seu olhar teórico, posteriormente muito debatido e criticado, que se refere a existência de uma “democracia racial” no Brasil. Sem ser nosso objetivo, neste texto, analisar as críticas e debates lançados acerca das obras freyrianas, é, todavia, inegável a importância de suas referências na consolidação de um imaginário acerca da sociedade brasileira, seja esse entendido como positivo ou não. O encontro das três “raças” (brancos, negros e índios) marcaria a miscigenação do povo brasileiro, contrastando com outros povos, como os europeus. E, como exemplificação da teoria, o futebol se evidenciou como uma das manifestações culturais utilizadas por Gilberto Freyre para explicitar tais pensamentos (tal como o samba, a capoeira, entre outros).


Anos depois, Mario Filho, que hoje dá nome ao Estádio do Maracanã, publicou o clássico e importante livro “O negro no futebol brasileiro”, onde dialogou com esses referenciais teóricos de Freyre. Inclusive, na primeira edição da obra em 1947, o prefácio do livro foi escrito pelo próprio Gilberto Freyre. A tese de Mario Filho/Gilberto Freyre passava pelo argumento de que o encontro de raças e a presença do negro teriam sido fatores positivos para o futebol brasileiro, pois faria com que se diferenciasse do “frio” e “tático” futebol europeu.


Essa narrativa ganhou sua exacerbação a partir da conquista dos mundiais de 1958, 1962 e 1970, tendo tido como destaques jogadores negros e/ou pardos, como Pelé, Garrincha, Didi, entre outros. Depois da derrota em 1950 e a culpabilidade pelo revés construída posteriormente e dada a atletas como Barbosa, Bigode e Juvenal, a conquista do tricampeonato em doze anos fez com que a narrativa freyriana, difundida na mídia por Mario Filho e espetacularizada por diferentes cronistas, como seu irmão Nelson Rodrigues, ganhasse força e consolidasse a ideia do Brasil enquanto país do futebol.


Após a Copa de 1970, iniciou-se os primeiros momentos de “crise”, acerca do “tipo brasileiro” de jogar futebol. Com um futebol mais "tático e burocrático", o Brasil não venceu os mundiais de 1974 e 1978, mesmo não fazendo campanhas ruins. Porém, o 4º lugar de 1974 e o 3º em 1978 (sem perder um jogo!), não se tornaram mais marcantes que o 5º lugar de 1982. Tudo pelo retorno do “verdadeiro futebol brasileiro”, como destacou a imprensa da época, narrativa consolidada e difundida até os dias atuais.


Não podemos negar o quanto a prática ajudou a referendar esse discurso. Com um selecionado recheado de craques e, mesmo com as pressões por “tirar os pontas” do esquema tático da seleção, Telê Santana conseguiu estabelecer um padrão de jogo mais técnico à equipe de 1982, semelhante ao que se via de 1970 para trás. O resultado negativo naquela Copa foi um choque, tanto para aqueles que acompanhavam o futebol brasileiro, quanto para a própria continuação de uma identidade da seleção que buscava “jogar novamente o futebol arte”. Seja ou não esse um discurso, tratava-se de algo presente nos debates acerca do selecionado nacional brasileiro, notadamente na grande mídia e no senso comum.


Essa busca pelo futebol arte foi se tornando constante mas, em muitas ocasiões, também distante, devido o processo de mercantilização do futebol que se consolidou com força total a partir da década de 1980. Como falar de uma identidade de jogo brasileiro, se nossos principais jogadores já não atuavam mais no país? Foi nesse cenário de transição que o Brasil, ainda com Telê, tropeçou em 1986 e, já sem ele, decepcionou em 1990, com uma seleção armada por Sebastião Lazaroni com três zagueiros e que “desconstruiu o modo brasileiro de jogar futebol”, tal como se falava nos jornais. A questão é: temos de fato uma forma singular de jogar futebol? É possível manter um modelo “raiz” de se jogar, enquanto outras escolas vão avançando taticamente e tecnicamente? São questões para se pensar... O fato é que, em 1994, com um time mais “burocrático” e comandado por um inspirado Romário (que desde 1988 já atuava no “Velho Mundo”), o selecionado voltou a conquistar uma Copa depois de 24 anos, mas não convenceu aqueles que buscavam reencontrar o tão sonhado “futebol arte”.


Todavia, a tentativa por essa busca não se encerrou. Retornou com Ronaldo fenômeno, naquele período ainda denominado Ronaldinho, mas esbarrou na sua estranha convulsão na Copa de 1998. Voltou em 2002, cheio de dúvidas e percalços, e encheu de esperança aqueles que clamavam pela volta do “verdadeiro” futebol brasileiro, a partir da conquista do penta comandado pelos três “Rs” (Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho).


2006 seria o ápice. A efetivação do retorno desse “verdadeiro” futebol brasileiro, como se afirmava na mídia. E o cenário prévio destacava isso. Além de ser a então campeã mundial, a seleção brasileira havia conquistado uma Copa América (2004) e uma Copa das Confederações (2005), ambas vencendo a rival Argentina nas finais. Além disso, consolidou a liderança nas eliminatórias sul-americana para a Copa de 2006, carimbando o passaporte para o torneio que ocorreu na Alemanha e esbanjando qualidade em campo com o então melhor do mundo Ronaldinho Gaúcho e seus coadjuvantes que, na verdade, dividiam o protagonismo: Ronaldo Fenômeno, Kaká, Adriano “Imperador” e Robinho “pedalada”. Fora a defesa sólida, formada por Cafu, Lúcio, Juan e Roberto Carlos. Um goleiro campeão europeu (Dida) e volantes que marcavam e, também, jogavam (Emerson, Gilberto Silva e, principalmente, Zé Roberto e Juninho Pernambucano). Um timaço que teve grandes craques, como o meia Alex, ficando de fora do grupo final que foi à Copa. E que, tal como em 1982, caiu antes do esperado, nas quartas de final e mais uma vez para a França de Zinedine Zidane e Thierry Henry, que já haviam derrotado o país na final de 1998.


A derrota de 2006 marcou, definitivamente, uma transição no contexto atual do futebol brasileiro: a derrocada da seleção em detrimento da preparação e planejamento das grandes equipes europeias. Equipes essas que apostaram em longos trabalhos para colherem frutos. Casos como os de Joaquim Low, desde 2006 na Alemanha; de Didier Deschamps, desde 2012 treinando a França; ou de Vicente del Bosque, que comandou a Espanha de 2008 a 2016. O trabalho desses três países, que resultaram em suas conquistas mundiais na última década (Espanha em 2010, Alemanha em 2014 e França em 2018), explicitam como, mais do que um "talento nato do futebol arte", as vitórias alcançadas foram frutos de longos trabalhos, sequência, planejamento, organização e preparação.


O planejamento passou a ser o caminho para mesclar, no mundo globalizado do futebol, a tática com a técnica. E o Brasil, nesse processo, ficou para trás. Ficou com Dunga em 2010 e com Felipão em casa no ano de 2014, com o inesperado jogo do 7×1. Curiosamente, desde então, a Copa em que o Brasil chegou mais longe foi exatamente em 2014, quando em casa alcançou as semifinais e saiu derrotada de forma vergonhosa para a Alemanha. Em 2006 e 2010, a equipe não ultrapassou as quartas de final, fato repetido em 2018.


Mais do que derrotas, não se enxergava mais um caminho de melhoras para a equipe nacional, que cada vez mais perdia força com seus aficionados. Questões mais centrais e problemáticas saltaram aos olhos do povo brasileiro, que viu no futebol, no máximo, uma forma de protestar contra algumas das injustiças sociais que vivencia diariamente. E quando olhavam para os dirigentes da CBF e de determinados clubes de nosso futebol, envolvidos em diferentes escândalos, o desinteresse aumentava.


Após um 7×1 e duas eliminações seguidas na Copa América, perdendo para Paraguai e Peru, a aposta no nome de Tite pareceu ser aquela que poderia “salvar” a seleção e nos reservar, pelo menos, dias melhores, recuperando o prestígio da equipe canarinho. E, até a Copa de 2018, talvez seja notório falar que o resultado foi muito além do esperado, culminando com a liderança isolada nas eliminatórias sul-americana e a classificação antecipada para a fase final da Copa, após pegar um grupo desacreditado que estava em sexto lugar na disputa. Porém, na Copa em si, mais uma vez o fantasma do futebol arte se repetiu: o Brasil caiu para a ótima seleção da Bélgica nas quartas de final, perdendo por 2x1 e recebendo críticas diversas.


Desde então, o trabalho de Tite, que se manteve no cargo, sofre com julgamentos e elogios por parte dos especialistas e de torcedores. Mesmo tendo jogadores talentosos e que remetem à "arte do futebol brasileiro", como Neymar, e tendo ganho a Copa América no ano passado, a seleção de Tite tenta construir um caminho e uma identidade que possa fazer com que a equipe bata de frente com os rivais europeus que ultimamente dominam o cenário do futebol (desde 2006, todas as Copas foram vencidas por equipes europeias), espantando assim o fantasma dos discursos de outrora que rodeiam seu trabalho. A questão é: seria possível implantar essa ideia do "futebol arte" no contexto globalizado atual e com o material humano que possuímos na atualidade? Essa é a questão principal a ser pensada. E, analisando os argumentos que trouxe neste texto hoje, acredito que você já deve imaginar qual é a minha opinião acerca do tema...


Enquanto a geração atual tenta fugir das críticas anacrônicas acerca dos problemas que possui (o que, obviamente, não quer dizer que o grupo atual não esteja propenso à críticas, mas sim que os motivos vão muito além de estarem ou não inseridos na ideia do futebol arte de outrora), o tricampeonato de 1970 merece ser festejado e comemorado mais do que nunca pois, se os atletas atuais buscam construir suas história com a camisa canarinho, a escalação formada por "Félix, Carlos Alberto Torres, Piazza, Brito e Everaldo; Clodoaldo e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino, tendo o velho lobo Zagallo como treinador, já faz parte da história eterna e vitoriosa do futebol brasileiro.


Esse texto contou com partes de outro trabalho que escrevi para o Blog História(s) do Sport da UFRJ, tendo sido adaptado para o portal do Jornal Toda Palavra:



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