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Os versos livres de Ernesto Cardenal

PALAVRAS LITERÁRIAS

Por José Messias Xavier

Morreu, em uma encalorada tarde de Manágua, Ernesto Cardenal, cinco anos antes de completar um século e vida. Era domingo, dia de missa, 1º de março de 2020, 15h06. Como padre, tornou-se um influente representante da Teologia da Libertação. Como guerrilheiro, ajudou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) a derrubar o regime de atrocidades de Anastasio "Tachito" Somoza Debayle, encerrando uma dinastia de tiranos, que dominou a Nicarágua por cinco décadas. Como poeta, criou uma escola literária de inspiração poundiana, marcada por uma narrativa inovadora e temática política, mística, humanista e americanista.

Com a queda de Somoza em 1979, integrou a Justa de Governo da FSLN no cargo de ministro da Cultura até 1987. Rompeu com o grupo marxista em 1994 e, já no século XXI, tornou-se um feroz crítico de seu antigo aliado Daniel Ortega, atual presidente nicaraguense, a quem acusou de ter implantado uma ditadura corrupta e violenta no país. Sua atuação política levou o Papa João Paulo II a suspender seu sacerdócio em 1985, 20 anos após sua ordenação. Em fevereiro do ano passado, contudo, o Papa Francisco retirou todas as sanções canônicas e o reintegrou à Igreja Católica Romana.

No campo literário, Cardenal é considerado um dos grandes nomes da poesia da América Latina, equiparado ao chileno Pablo Neruda. Detentor de vários prêmios internacionais, foi agraciado com o Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, em 2012, com a Legião de Honra da França no ano seguinte e, em 2014, recebeu o Theodor-Wanner, do Institut für Auslandsbeziehungen de Stuttgart (Alemanha). Concorreu ao Nobel de Literatura em 2005, mas, naquele ano, a Academia optou pelo dramaturgo inglês Harold Pinter.

Ernesto Cardenal adotou o verso livre para expandir seus poemas em uma narrativa próxima à crônica. Há curiosamente fortes traços do Imagismo neles, principalmente na exploração da linguagem coloquial e na imposição de um ritmo para obter determinada sonoridade, associada à justaposição de elementos concretos para atingir uma abstração. Um exemplo, em tradução de Thiago de Mello: “Nele estão concentrados/a beleza de todas as mulheres/e o sabor de todas as frutas/e a embriaguez de todos os vinhos/e a doçura e a amargura de todos/os amores da terra,/e provar uma gota de Deus/é ficar louco para sempre”.

O poeta, em uma autoanálise durante entrevista para o jornal El País, se definiu como o fundador de um novo estilo, a “poesia científica”. “Acredito que sou o único poeta, ou pelo menos o único que eu conheço, que está fazendo poesia sobre a ciência, poesia científica. Para mim é quase como uma oração ler livros científicos. Vejo neles o que alguns disseram ser rastros da criação de Deus”, disse ele.

O governo que ele combatia, de Daniel Ortega, decretou três dias de luto e emitiu nota oficial, chamando-o de “glória e orgulho” da Nicarágua. Pura hipocrisia. Para o mundo, os versos de Cardenal continuarão a soar como um manto protetor contra a opressão e a miséria dos povos. Sua imagem, saboreando um nacatamal em uma tarde de domingo em Manágua, às margens do lago onde, antes dos brancos, os náuatles pescavam e entoavam canções para outros deuses, será eterna.


SEM POESIA NÃO DÁ


Para os que virão

Thiago de Mello


Como sei pouco, e sou pouco,

faço o pouco que me cabe

me dando inteiro.

Sabendo que não vou ver

o homem que quero ser.


Já sofri o suficiente

para não enganar a ninguém:

principalmente aos que sofrem

na própria vida, a garra

da opressão, e nem sabem.


Não tenho o sol escondido

no meu bolso de palavras.

Sou simplesmente um homem

para quem já a primeira

e desolada pessoa

do singular – foi deixando,

devagar, sofridamente

de ser, para transformar-se

— muito mais sofridamente —

na primeira e profunda pessoa

do plural.


Não importa que doa: é tempo

de avançar de mão dada

com quem vai no mesmo rumo,

mesmo que longe ainda esteja

de aprender a conjugar

o verbo amar.


É tempo sobretudo

de deixar de ser apenas

a solitária vanguarda

de nós mesmos.

Se trata de ir ao encontro.

(Dura no peito, arde a límpida

verdade dos nossos erros)

Se trata de abrir o rumo.


Os que virão, serão povo,

e saber serão, lutando.



Thiago de Mello é um poeta, romancista, dramaturgo e tradutor brasileiro. É um dos poetas mais influentes e respeitados no país, reconhecido como um ícone da literatura regional. Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Preso durante a ditadura militar, exilou-se no Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e colaborador.


Esperemos

Pablo Neruda


Há outros dias que não têm chegado ainda,

que estão fazendo-se

como o pão ou as cadeiras ou o produto

das farmácias ou das oficinas

- há fábricas de dias que virão -

existem artesãos da alma

que levantam e pesam e preparam

certos dias amargos ou preciosos

que de repente chegam à porta

para premiar-nos

com uma laranja

ou assassinar-nos de imediato.



Pablo Neruda, nascido Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto (Parral, 12 de julho de 1904 — Santiago, 23 de setembro de 1973), foi um poeta chileno, considerado um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha (1934 — 1938) e no México. Recebeu o Nobel de Literatura em 1971, enquanto ocupava o cargo de embaixador na França, nomeado pelo então presidente chileno Salvador Allende.

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