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Precisamos falar de Iñaki Williams: nacionalismo basco e racismo

Por Victor de Leonardo Figols


Iñaki Williams atuando pelo Athletic Bilbao. Foto: Дмитрий Садовников/Wikimedia.

Se você não sabe quem é Iñaki Williams, você deveria saber. Hoje, Williams é o jogador basco mais importante do Athletic Club de Bilbao. Não só por suas qualidades técnicas e pelos gols importantes que marcou recentemente, mas também porque Williams foi o primeiro jogador negro a marcar um gol em mais de 100 anos de história do clube.

Para entender como isso aconteceu é preciso voltar no século XIX, antes mesmo da fundação do próprio Athletic Club, quando o nacionalismo basco estava se formando. O grande responsável por encabeçar o projeto político-nacionalista de construir um País Basco foi o político e escritor Sabino Arana (1865–1903). Influenciado pelos movimentos nacionalistas românticos do XIX, Arana publicou o livro Bizkaya por su independencia, em 1892.


Em seu livro, Arana pedia o retorno dos direitos forais (os fueros), isto é, uma forma de autonomia política e econômica da região em relação à Coroa de Castela. Além disso, Arana também defendia a unificação dos diversos dialetos da região (a língua viria a se chamar euskera), a criação de uma bandeira inspirada na do Reino Unido (a ikurriña), a delimitação territorial do País Basco (Euskal Herria), assim como a defesa da autonomia e da autodeterminação do povo basco. Em suma, Arana criou os elementos que definem até hoje o nacionalismo local: a língua, a cultura, a etnia e o território.


Em 1895, Arana fundou o Partido Nacionalista Vasco (PNV), que até hoje é um dos partidos mais fortes da região. Na época de sua fundação, o PNV tinha inspirações liberais, em termos econômicos, mas extremamente conservador, defendendo os direitos tradicionais,tendo um discurso xenófobo em relação aos espanhóis. O partido teve grande apoio nas regiões rurais do País Basco e nas classes médias urbanas.


O Athletic Club foi fundado anos depois, em 1898, por um grupo de britânicos e por parte da elite local de Bilbao. Apesar da forte influência britânica, a identificação do clube com a cidade, — e consequentemente com a região basca –, se deu logo nos primeiros anos, tanto que o nome popular do clube é até hoje Athletic de Bilbao.


Nas primeiras décadas do século XX, assim como o futebol, os movimentos nacionalistas nas regiões históricas da Espanha estavam em pleno desenvolvimento. A Juventud Vasca de Bilbao, (uma ramificação do PNV) fundou o clube Euzkindarra (1909), entendendo o futebol como mais uma forma de expressar a força da juventude basca. Muito mais do que um clube, o Euzkindarra era um projeto político-nacionalista.


Foi nessa fase de consolidação do futebol no País Basco, que no ano de 1911, o Athletic Club alterou a sua política de contratação e passou a aceitar apenas jogadores de origem basca. Todavia, foi só em 1919 que a equipe do Athletic Club se tornou exclusivamente basca, acompanhando uma política que já era adotada em outros clubes da região. Para o clube, um jogador só seria considerado basco se tivesse nascido e crescido no País Basco. Além disso, os quatro avós tinham de ter sobrenomes bascos. Segundo as ideias da época, ao restringir a contratação de jogadores, o clube estaria valorizando a formação de jogadores bascos, ou seja, o futebol regional.


Obviamente, alinhado ao discurso nacionalista basco que estava em pleno crescimento na época, os critérios adotados eram puramente político-ideológicos, indo além dos meramente esportivos. Entretanto, com o passar do tempo, essa política nacionalista dos clubes ajudou a criar uma escola basca de jogar futebol. O estilo ficou conhecido pelo vigor físico dos jogadores, em alguns momentos até mesmo pela brutalidade. Mas, por outro lado, também fez fama pela eficiência em fazer gols. Sobretudo, com o Athletic Club, esse estilo de jogo ganhou a alcunha de Furia Vasca, uma clara tentativa de associar o estilo de jogo dos bascos com valores como coragem, força e, principalmente, patriotismo.


A escolha do Athletic Club em restringir jogadores não-bascos foi fundamental para aproximar ainda mais o clube do País Basco, — e consequentemente, do nacionalismo basco –, a ponto de sofrer restrições e perseguição durante as ditaduras de Primo de Rivera (1923–1930) e, principalmente, de Francisco Franco (1939–1975).


A ditadura de Franco foi um duro golpe contras os nacionalismos regionais, principalmente o basco. Todas as expressões da cultura basca foram perseguidas e duramente reprimidas nesse período. A língua basca foi abolida da vida pública, o único lugar onde se podia falar euskera era nos estádios de futebol. Como bem escreveu Eduardo Galeano, “em euskera conversam as arquibancadas do San Mamés, em Bilbao”.


Mesmo diante de toda a repressão do regime, o Athletic Club se manteve fiel aos princípios adotados em seus primeiros anos de vida. Foi durante a ditadura de Franco que o clube foi assumindo definitivamente o papel de representante do País Basco. Isso fica mais evidente quando observamos as conquistas da Copa del Generalísimo. O título significava, — ainda que simbolicamente –, o reconhecimento da identidade nacional, uma vez que próprio general Francisco Franco entregava a taça ao time campeão. Foi nesse período também que o Athletic Club se tornou o maior vencedor dessa competição, tornando-se uma das principais potências do futebol espanhol, ao lado de Real Madrid e FC Barcelona.


Ainda nos anos 1950, o clube contratou um jogador negro: Miguel Jones. Nascido na Guiné Equatorial, mas tendo vivido desde pequeno no País Basco, o jogador foi dispensado sem nunca atuar pelo clube. Anos depois, Miguel Jones teria negado que o racismo foi a principal barreira para jogar pelo Athletic Club.

Durante a ditadura de Franco, o clube basco manteve sua postura de não contratar jogadores não-bascos. Todavia, por mais de uma vez, essa política foi colocada à prova, principalmente pela pressão de clubes como Real Madrid e FC Barcelona, que pediam uma abertura do mercado espanhol. Do outro lado, os clubes bascos, Athletic Club e Real Sociedad, alertavam para os perigos de que uma abertura para o mercado espanhol poderia criar um abismo entre os clubes bascos e os demais . O primeiro movimento foi o de permitir até três jogadores estrangeiros, desde que fossem filhos e netos de espanhóis.

O segundo passo foi abrir para jogadores de qualquer nacionalidade. Entretanto, cada clube só poderia contar com no máximo dois jogadores. Por fim, na década de 1980, a Liga finalmente aprovou o terceiro estrangeiro.


Diante dos riscos de perder protagonismo no futebol espanhol, o Athletic Club foi obrigado a rever a sua tradicional política de contar apenas com jogadores bascos. O clube expandiu o conceito de País Basco para além da Espanha. Aqui vale lembrar que existe até o hoje um debate sobre os limites territoriais do País Basco, que entende que uma franja do território francês também faria parte do País Basco. De qualquer forma, o Athletic Club assumiu que o País Basco vai além dos territórios espanhóis, passando a aceitar jogadores nascidos na região francesa basca.


Desde a restrição de 1919 até os anos 1980, o Athletic Club contou com pouquíssimos jogadores estrangeiros. Um deles foi um brasileiro nascido em São Paulo. De descendência basca, Vicente Biurrun se mudou muito cedo para a Espanha e se formou — enquanto jogador de futebol — nos clubes da região. Após passar pela Real Sociedad e pelo CA Osasuna, Biurrun foi contratado pelo clube de Bilbao e permaneceu no Athletic Club por quatro temporadas.


Na década de 1990, o Athletic Club quase contratou Benjamín Zarandona. Nascido em Valladolid, mas com pai basco e mãe da Guiné Equatorial, a contratação do meio-campista foi barrada pelos sócios, que usaram o seu local de nascimento como argumento para isso. Anos depois, o jogador disse que a cor de sua pele foi um fator determinante para a sua não contratação.


Em 1996, com a resolução do Caso Bosman, que abriu os mercados de todos os clubes europeus, o Athletic Club teve que rever novamente suas restrições. Desta vez, olhou para o lado francês e contratou o jogador Bixente Lizarazu, que ficou apenas uma temporada no clube. Na mesma situação, anos depois, revelou o zagueiro francês Aymeric Laporte, que ficou no clube de 2013 a 2018.


Nos anos 2000, os casos de jogadores que não nasceram em território basco, mas que jogaram no Athletic Club se tornaram relativamente comuns. Era mais uma vez o clube flexibilizando a sua política: passou a permitir jogadores formados nas categorias de base do próprio clube ou de clubes bascos, mesmo aqueles não nascidos na região, mas que estivessem inseridos na sociedade e cultura basca desde pequenos. Essa mudança permitiu ao clube contar com jogadores nascidos em outros países, como, por exemplo, o venezuelano Fernando Amorebieta, que ficou no clube entre 2005 e 2013.

No decorrer da sua história, o Athletic Club se distanciou daquele nacionalismo xenófobo idealizado por Arana e passou a assumir uma postura abertzale, isto é, um nacionalismo patriótico, muito mais ligado com a independência basca do que com as ideias conservadoras do final do século XIX. Tanto que, recentemente, dois jogadores negros se profissionalizaram pelo clube. Nascido e criado no País Basco, mas filho de angolanos, Jonás Ramalho se tornou o primeiro jogador negro a vestir a camisa do Athletic Club, em 2011, cem anos depois de o clube adotar sua política. O segundo foi Iñaki Williams, que chegou ao time principal em 2014.


Iñaki Williams é fruto da globalização da qual o futebol não está alheio, muito menos o Athletic Club com a sua política de contratação. Nascido em 1994, filho de pais ganeses, Williams começou a jogar futebol pelo clube Natación Pamplona. Em poucos anos foi incorporado às categorias de base do Athletic Club. O atacante, veloz e habilidoso, foi o primeiro negro a marcar um gol para o clube basco, em 2015. Mas toda a sua trajetória até chegar ao time principal também foi uma luta contra o racismo.


A torcida do Athletic Bilbao, em sua maioria formada por torcedores que apoiaram o separatismo basco — e outros ainda pertencem à izquierda abertzale (esquerda patriótica) –, recebeu Williams de braços abertos. Todavia, torcedores rivais acusaram o clube de não estar contratando um jogador basco simplesmente por Williams ser negro. O discurso racista partiu de uma minoria de torcedores da Real Sociedad, insinuando que um negro não poderia ser basco. Uma clara demonstração de xenofobia e racismo.


Esse mesmo discurso racista encontrou voz nas arquibancadas de outras equipes espanholas. Ainda em 2016, Williams sofreu insultos racistas por parte de torcedores do Sporting de Gijón. Em janeiro de 2020, em um jogo contra o RCD Espanyol, Williams foi novamente vítima de insultos racistas. Nos dois casos, a Liga Nacional de Futebol Profissional não tomou nenhuma grande atitude contra os atos racistas sofridos por Williams. Diante da falta de ações efetivas, Williams declarou que caso ocorra novos insultos racistas, ele e seus companheiros vão abandonar a partida.


Como todo nacionalismo, o basco tem bases xenófobas e pode esconder um discurso racista. Entretanto, o Athletic Club percebeu as mudanças do tempo e se adaptou. O clube soube absorver a diversidade imposta pela globalização e, sem abrir mão dos seus princípios, — e de seu nacionalismo historicamente enraizado –, incorporou Williams ao elenco. Hoje, ele é o jogador basco mais importante do futebol espanhol. Como o próprio Iñaki Williams diz: “¡Yo soy negro, pero también soy vasco!”.


Victor de Leonardo Figols é doutorando em História pela UFPR e um dos editores do portal Ludopédio.


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