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Railane Borges | Protejam Suas Menininhas

Aos 6 anos vovó começou a se desagradar de mim e eu percebi que não seria a menininha que eles esperavam que eu fosse. Os beliscões podiam vir quando eu não cruzava as pernas, quando errava a etiqueta à mesa e mesmo se estivesse “relaxada demais” o que sempre significava ‘mal vestida’ ou na minha versão: usando roupas confortáveis. (Nenhum namorado ia querer parar comigo).

Pexels

Vovó toda vez que cortava os cabelos, me levava ao salão. Ficávamos horas lá. Na sacada, debruçada a olhar pra fora, tinha a vista dos treinos no clube Mauá. Os corpos soltos e livres dos atletas me transportavam para outro planeta. Horas de corte, pintura, rinsagem, laquê, perfume e muitos adjetivos sobre aparência depois e esse planeta escorria lento pela sacada para se juntar às águas daquela piscina sempre tão limpa.


“Vai querer qual hoje, ‘Raiane’? (Ninguém nunca acertava meu nome)


“Chanel!”


Tsc. O som da insatisfação ecoa dentro de mim até hoje. Me lembro que detestava desembaraçar os cabelos. Abria a boca a reclamar. Eu queria poder ter sido apenas criança. Mas precisei resistir contra um inimigo bem estabelecido e difícil de identificar.


A principio, achava que o problema era eu. Uma vez pensei que ganhava um tamanco de presente, era da Carla Perez, (dela só me lembro de um rubor na face quando a via dançar) mas o presente mesmo foi ter virado o pé.


Aquilo me garantiu um gesso e a fuga temporária daquele treco estranhamente cheiroso, incômodos nunca esquecidos de uma infância. Mas aprendi algo. Que pau que nasce torto nunca se endireita!


Ateei fogo em todas as minhas bonecas emperequetadas. Não eram minhas amigas, só serviam para me lembrar que eu era imprópria. A garota estranha. Se pelo menos alguma delas se parecesse comigo, talvez vovó gostasse mais de mim. Meu irmão gostava de costurar roupa para colocar nelas.


Outras nós operávamos conscientes de que jamais sairiam ‘com vida’ do centro cirúrgico. Como os omeletes precisam dos ovos, também não se faz um bom doutor sem antes abrir umas bonecas, não é?


Uma em particular me lembro de derrubarmos pela janela para conferir se os dentes de Guará eram mesmo tão fortes quanto pareciam quando as visitas subiam as escadas lá de casa e ele atacava a grade do canil, chorando, latindo e ganindo ao mesmo tempo. (Eu achava que ele sentia muita fome) Depois tinha que ouvir um longo sermão de mamãe sobre como eu era terrivelmente relaxada com as minhas coisas. Talvez eu devesse ter dito que não gostava de como faziam as bonecas, mas achava internamente que ela já sabia.


Nos dias difíceis eu olhava aquelas barbies e desejava apenas poder ser como elas, me encaixar. Mas não era. Nunca seria. Então elas é que foram para uma caixa até serem definitivamente levadas pelos duendes da infância. Sobrou o castelo de Greyscow que herdamos de um primo crescido, as bolinhas de gude e as cafifas que ninguém me dava e eu precisava conquistar entre as avoadas de Santa Catarina e a papelaria infinita que habita o armarinho da casa de uma professora.


Mas a brincadeira favorita mesmo sempre foi a pelada da travessa, onde garrei orgulho pelos roxos nas pernas, que inclusive eu carreguei pelos dias como troféus até esverdearem e irem aos poucos esmaecendo… Eu não era atleta e não treinava no clube Mauá, mas tinha um corpo forte como os que via por lá. Me descobri artista nesta mesma fase. E não só isso.


Trabalhar na televisão era bem pior que ir com vovó ao salão. E me fez quase entendê-la. Ela tinha medo que eu vivesse exatamente o que vivi. Os rótulos, as caras feias nos rostos de quem nunca viu uma menina ousar brincar com os supostos limites. A sensação de não-pertencimento. Os que ficaram mais gravados foram esses: ‘ingovernável’, ‘rebelde’. “E vamos emagrecer um pouquinho, hein?”


Depois fiquei adulta e no primeiro emprego, passei pelo constrangimento de ter sido chamada a atenção pelas minhas unhas. Não as tinha feito.


“Mas eu fiz algo de errado?”


“Não, mas é exigência do patrão”


Fui embora me sentindo suja e nunca mais voltei. Eu não era um quadro na parede ou um arranjo de plantas para decorar o meu serviço à partir do meu corpo. Eu era uma pessoa sem unhas feitas tentando trabalhar. Quando aquilo doeu eu decidi que nunca mais iria em uma manicure, quem me aceitasse muito que bem.


Arrumei outro trabalho e lá a obrigação era com o salto alto. A humilhação de se entender gente enquanto aprende a se equilibrar em um salto alto no início da vida adulta, sempre atrasada, de ônibus, só não soou um alarme em mim porque em seguida a gravidez na adolescência me roubou toda a atenção! A resistência cresceu, ficou maior que eu.


Nasceu uma menininha. Ser mulher moldou toda a minha vida, mesmo quando eu perguntava às pessoas como, afinal, podia ser tão importante o que estava por fora. Gritei sozinha por tanto tempo… Não foi naturalmente que me dei conta da indústria que nos boicota e molda para seus propósitos. Foi através da dor.


Cosméticos diferenciados e caros para mulheres, unhas que se deve fazer semanalmente, cabeleireiro, depilação, penduricalhos nas mãos, nas orelhas furadas, no pescoço, nas roupas apertadas, frufrus e tecidos que pinicam. Tudo isso me parecia um atentado particular contra a liberdade do meu corpo. E era.


Era tudo para me por a serviço de outros, para agradar aos outros, acima do meu próprio bem estar. A cura foi demasiadamente lenta. Me aceitar no meu peso, com as marcas e características de cada idade é um exercício que ainda preciso praticar todos os dias para me lembrar do meu valor.


Faz uns dois ou três meses que vejo diariamente propagandas, produtos, críticas e uma suposta ‘ansiedade’ para o lançamento do filme da Barbie, e não imaginava o quanto isso ia mexer comigo. Não dá pra ter dúvidas aqui. Não a esta altura. A Barbie é o demônio do capital vestido de rosa. Não tem melhor maneira de dizer isso.


A indústria se deu conta de que as mulheres estão mudando e a propaganda será a lâmina hostil que eles usarão para nos violentar os afetos quando seus produtos se tornarem obsoletos. O feminismo não é um discursinho a se encaixar em um mundo de plástico para reciclar um produto que ninguém mais quer.


Esse filme não é apenas um filme. Esse longa-metragem é a maior propaganda de recuperação de uma indústria que eu torço dia após dia para que cerre suas portas, para que meninas como eu, não sofram mais as violências que eu sofri.


E eu realmente não entendo como o público geral pode ser tão ingênuo e inócuo, na expectativa para ser enganado e ficar ‘confuso’ com essa ABERRAÇÃO que foram os anos 70, 80 e 90, em relação ao estereótipo feminino e o controle de corpos e sentidos.


Libertem-se. Mas não tenham dúvidas: O FILME VAI SER LEGAL!!! Quiçá perfeito! O marketing bem feito não erra!


O Ryan Gosling amarrado por um contrato para viver o Ken e arrebatar uma determinada faixa etária que o ator arrastou com o antigo sucesso de audiência, o emocionante “diário de uma paixão”…? Uma porta aberta para a juventude atual, diferentona e fora do padrão com Billie Eilish construindo a trilha…? A irretocável Greta? Uma mansão Barbie verdadeira, construída para garantir o sucesso do filme? Ações de ativação e premieres fantásticas simultâneas ao redor do mundo? Acabar com TODA a tinta rosa que existe durante o processo de UM filme? Nada como a plasticidade e o consumo, não é?


A Barbie sempre mostrou a que veio: molda a subjetividade feminina dentro do padrão social estabelecido para a época, mesmo que esse ‘padrão’ mude para parecer legal. Não, esse filme não é só um filme, assim como a Barbie não é ‘só uma boneca’. Levem seus filhos ao cinema para assistirem a filmes, não peças publicitárias que se proponham à formatação de subjetividades e ‘repaginada’ no ‘visual’ da marca.


Protejam suas menininhas.


*Railane Borges é atriz e cineasta.



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