Sambódromo, 40 anos: quando o samba atropelou a marcha fascista
Por Luiz Augusto Erthal
A síndrome do esquecimento da pós-verdade pretende transformar o aniversário de 40 anos da Passarela do Samba em uma efeméride de menor grandeza, bem menor daquela que o próprio conceito apoteótico do majestoso templo arquitetado por Oscar Niemeyer estabeleceu. O Sambódromo representou - e representa - muito mais do que uma casa definitiva para os desfiles das escolas de samba, assim como o Maracanã o foi e o é para o futebol.
Muito mais do que uma estrutura de concreto armado, cujo tributo à manifestação popular do carnaval carioca seria por si só uma razão mais do que coerente, o Sambódromo foi, ao som contagiante e patriótico do samba, o marco concreto do reatamento do povo brasileiro com o sonho trabalhista de construção de uma civilização justa, independente e autônoma no Hemisfério Sul, vinte anos depois de o golpe das forças civis e militares reacionárias tentaram, mais uma vez - depois de levarem o presidente Getúlio Vargas ao desespero extremo -, impedir essa caminhada nacionalista com a deposição do presidente João Goulart.
Vivíamos ainda sob regime militar. Ao voltar do exílio, Leonel Brizola - principal inimigo da ditadura àquela altura, cujo nome era, nos anos que antecederam a abertura política, improferível no Brasil, enquanto Lula já estampava as capas de revistas como Veja e Isto É -, tenta retomar o projeto político trabalhista interrompido pelas baionetas de 64. Lutando contra o regime; a fraude eleitoral engendrada pela ditadura para favorecer seu candidato, Moreira Franco, nas eleições para o Palácio Guanabara, que ficou conhecida como o “Caso Proconsult”; os meios de comunicação, encabeçados pelo sistema Globo; e o poder econômico, Brizola se elege governador do Estado do Rio no final de 1982.
Sua primeira insurgência: pôr fim ao monta-desmonta de arquibancadas, que ocorria dentro de um processo viciado por anos a fio, e dar dignidade ao maior evento do carnaval brasileiro. Para isso convoca, além do seu vice-governador, que acumulava o cargo de secretário de cultura, Darcy Ribeiro, o arquiteto Oscar Niemeyer, que, em tempo recorde, apresentou o projeto da magnífica obra.
Local escolhido: Rua Marquês de Sapucaí, berço do samba, próximo de onde existiu a icônica casa da Tia Ciata, no marco atemporal da Praça XI, tragada pela reforma urbanística que permitiu a abertura da Avenida Presidente7 Vargas. Próximo, bem próximo também do local do último ato do governo trabalhista de João Goulart: o Comício da Central do Brasil, realizado no dia 13 de março de 1964, pouco mais de duas semanas antes do golpe militar, quando o presidente assina em praça pública, na maior manifestação popular já realizada até então, as Reformas de Base e sela o seu destino sem se arredar dos compromissos que assumira com o povo brasileiro.
Acompanhei, como jovem repórter a serviço da assessoria de comunicação do Palácio Guanabara, a reta final da obra do Sambódromo. Vi serem erguidas as belas estruturas de concreto armado em forma de gotas de Pierrot, que dão forma às laterais das arquibancadas. No entanto, a beleza e engenhosidade de Niemeyer - àquela altura já consagrado como um dos maiores arquitetos do planeta - foram postas em dúvida pelos lacaios de uma imprensa oligárquica e golpista.
A segurança da obra foi questionada não só, mas principalmente pelas organizações Globo, que boicotaram de todas as formas, inclusive se negando a transmitir o desfile (a TV Manchete realizou a primeira transmissão do carnaval no Sambódromo). Em outra frente da mídia vassala, o jornalista Zózimo Barroso do Amaral escreveu em sua coluna do Jornal do Brasil que a obra do Sambódromo, por seu cronograma expresso, seria uma empreitada de engenharia temerária, mas, mesmo que não caísse, seria uma obra vultuosa para utilização apenas por quatro dias no ano e que iria se transformar depois em um “valhacouto de mendigos e marginais”.
Naquele apoteótico Carnaval de 1984, quando a Mangueira, grande campeã daquele ano, sacudiu e revolucionou o Sambódromo com a histórica virada na Praça da Apoteose (a escola foi a última a desfilar e, depois de encerrada a apresentação da última ala, fez uma meia volta e retornou com um segundo desfile pela avenida no sentido contrário), o samba marcou o reencontro do povo com a sua maior expressão política, atravessando a marcha do fascismo que completava 20 anos de poder.
O Sambódromo, que seria “um valhacouto de mendigos e marginais”, abrigou, logo depois do seu primeiro carnaval, a maior escola pública da América do Sul, por onde desfilou, durante muitos anos, antes mesmo do lançamento do programa dos Cieps, a obsessão de Brizola pela educação pública. A propósito dos Cieps (e a escola que funcionou na Passarela do Samba tinha inicialmente o status de um Ciep com outra característica arquitetônica), Paulo Freire declarou, em encontro com Darcy Ribeiro em Niterói, nos anos 90 do século passado, que esse foi “o maior projeto educacional da América Latina”.
Além do samba e da educação, o Sambódromo se transformou durante o governo Brizola, seguindo a sua vocação original, em espaço de cultura e lazer permanente. Lembro bem do primeiro grande show da Praça da Apoteose, uma não menos apoteótica apresentação, que tive o privilégio de assistir, de Milton Nascimento, que entoou ali alguns dos hinos daqueles anos que marcaram a libertação do povo brasileiro da sua longa noite de horror, como as músicas Faca e Corte e Coração de Estudante.
Se o Comício da Central, em 64, foi, de fato, o último ato do último governo trabalhista antes do golpe militar, a inauguração do Sambódromo foi o primeiro ato, em praça pública, do reencontro do trabalhismo, como governo, com o povo brasileiro. Vi de perto os olhos faiscantes do Brizola naquele fevereiro de 1984, saudando o povo e a escola campeã. Alguns meses depois, ao acompanhá-lo, sozinhos, em uma vistoria relâmpago feita por ele horas antes ao palco do grande comício das Diretas Já, na Candelária, do outro lado da Presidente Vargas em relação ao Sambódromo, vi seus olhos em uma mirada fixa e perdida durante longos minutos para o lado da Central do Brasil.
Outro ato dos muitos vividos pelo povo brasileiro até aqui nesse grande enredo de um fevereiro cujas cortinas ainda não se fecharam.
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