top of page

Sujeira tipo exportação: 'Brasil está virando lixão dos EUA'


(Reprodução)

Da Agência Sputnik

Por Marina Lang

O dia 1º de setembro de 2022 tinha tudo para ser comum na rotina aduaneira do Porto do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, região metropolitana de Fortaleza. Com um volume anual de cerca de 4,6 milhões de contêineres e 18 milhões de cargas movimentadas, o porto recebeu um recipiente que chamou a atenção dos fiscais da Receita Federal brasileira.


Uma empresa brasileira havia feito a compra de três contêineres de fardos de algodão, que são resíduos varridos do chão de fábrica após o fim da tecelagem. Ao passarem por raios X, os agentes da Receita estranharam o conteúdo de um deles, similar a corpos de metal.


"Desovaram" o invólucro — termo do jargão dos portos para o caso de uma carga ser aberta pela fiscalização — e, quando tiraram os restos de algodão da superfície, constataram que o contêiner estava cheio de lixo, traficado diretamente dos Estados Unidos para o Brasil.


Embora a importação de material para fins recicláveis seja uma prática comum e legal (caso dos resquícios de algodão), o tráfico internacional de dejetos descartáveis é proibido por lei no Brasil. Empresas estrangeiras que exportam o lixo imprestável burlam a legislação descrevendo a carga como um material, mas na verdade recheiam contêineres com detritos, em uma tentativa de que eles passem imperceptíveis pela fiscalização alfandegária.


O caso do Porto do Pecém, obtido com exclusividade pela Sputnik Brasil, foi o primeiro na costa cearense, segundo detalhou à reportagem um dos agentes ambientais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que prefere não ser identificado.


"A gente ficou impressionado com o que viu. A sensação que fica é que fizeram faxina em unidades fabris e tudo foi colocado no contêiner. Havia restos de alimentos, biscoitos, EPIs [equipamentos de proteção individual], máscaras, óculos, latas de energético, de refrigerante... Foram encontradas aproximadamente 14 toneladas de resíduo de algodão contendo lixo. Foi chocante."

Lixo ocultado nos fardos de algodão recebidos no Ceará, que encobriam os rejeitos (Reprodução)

A carga foi rechaçada pelas autoridades fiscalizadoras do Brasil.


"A devolução da carga ocorre às custas do importador. Como depende de logística marítima, foi dado um prazo de dez dias para que a empresa restituísse os fardos ao país de origem", relatou o agente do Ibama.


Embora inédito no Ceará, o tráfico internacional de lixo oriundo de países ricos e destinado a nações pobres não é algo exatamente novo no mundo — e muito menos no Brasil. Em 2009, um caso se tornou um escândalo internacional e quase criou uma crise diplomática entre o país e o Reino Unido, quando 73 contêineres com toneladas de lixo doméstico foram exportados de lá para cá.

Contêineres de lixo do Reino Unido exportados para o Brasil, que os devolveu em 2009 (Foto: Divulgação / Guga VW)

Autor do livro "Toma que o Lixo é Teu", o jornalista gaúcho Diniz Júnior foi quem descobriu a história toda. À Sputnik Brasil, ele contou que estava em uma viagem de trabalho em Hamburgo, na Alemanha, em junho de 2009, quando ativistas ambientais souberam de sua presença e pediram para fazer contato.


Eles então lhe relataram que a Europa estava enviando "muito, muito lixo para o Brasil". Abriram um mapa e apontaram todas as rotas do tráfico internacional de lixo e para quais portos os contêineres eram destinados.


Quando voltou ao Brasil, Diniz foi até a Receita Federal de Rio Grande (RS) para investigar. O delegado do caso ficou surpreso com a informação que o jornalista obtivera, uma vez que estava conduzindo uma investigação sigilosa sobre a remessa havia seis meses.

Até banheiro químico em meio ao lixo que veio do Reino Unido para o Brasil (Foto: Divulgação/Guga VW)

Com outros agentes, o delegado da Receita levou Diniz e um fotógrafo para 40 contêineres que estavam no terminal do Porto do Rio Grande. Quando os fiscais tiraram os lacres, os dois ficaram assombrados com o que viram: eram 670 toneladas de sujeira importada da Europa.


Era toda a sorte de itens: seringas e preservativos usados, latas e vidros com restos de alimentos, medicamentos vencidos, fraldas descartáveis usadas, pilhas e até um gato morto.

"É uma sacanagem", indignou-se. "É o mundo rico se livrando da carga, dos rejeitos, e mandando para mercados subdesenvolvidos."


A polícia alfandegária conseguiu rastrear outros dois portos que foram destino dos dejetos do Reino Unido: o porto de Caxias do Sul, também no Rio Grande do Sul, e o Porto de Santos (SP).


"O que mais me chocou é que no meio de brinquedos quebrados e sujos havia um bilhete escrito em português dizendo para distribuí-los a 'crianças pobres do Brasil' e recomendando lavá-los antes de serem entregues. Foi um deboche. Aquilo revoltou muita gente quando publicamos a reportagem. Ao mesmo tempo, deu uma pista à polícia: descobriram que um brasileiro com passaporte português no Reino Unido participou disso", relembrou Diniz.

Bilhete escrito em português deu pistas sobre traficante internacional de lixo (Foto: Divulgação/Guga VW)

A repercussão negativa mundial foi tão intensa que obrigou o governo do Reino Unido a admitir a remessa de toneladas de detritos e a pedir desculpas oficialmente ao Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU).


O Brasil devolveu todos os contêineres de lixo ao Reino Unido. Duas importadoras e três transportadoras foram multadas pelo Ibama em R$ 408 mil cada.


Quando questionado sobre se o Brasil corria o risco de se tornar um lixão dos Estados Unidos, Diniz foi taxativo em sua resposta:


"Sim. O Brasil está tomando uma rota hospitalar e doméstica, principalmente hospitalar. É um comércio ilegal que envolve grandes máfias. O Brasil está virando um lixão dos EUA e de outros países ricos", vaticinou.


A percepção não está distante daquelas dos demais especialistas consultados pela Sputnik Brasil.

Para o agente do Ibama que trabalhou na inspeção da carga apreendida no Ceará em setembro, a situação é preocupante.


"Eu considero um risco enorme nos tornarmos um lixão dos Estados Unidos. É preciso estar atento a esse tipo de movimentação. O Porto de Santos é muito movimentado, e muita carga ilegal pode passar batida. Isso está acontecendo do Sul ao Nordeste do Brasil, então existe uma tendência aí."

Um dos contêineres de lixo que chegaram do Reino Unido e foram devolvidos (Foto: Divulgação/Guga VW)

Mais casos de exportação ilegal de lixo nos portos brasileiros

A cifra é incerta, já que se trata de um mercado ilegal, mas a estimativa é que países ricos paguem entre US$ 100 (R$ 533) e US$ 2 mil (R$ 10,6 mil) por tonelada para despachar o lixo a países pobres.

Desde janeiro de 2021, quando a China fechou seus portos para o lixo internacional, abandonando uma política de décadas de compra de detritos para reciclagem, países ricos entraram em parafuso.


Especialistas e autoridades creem que isso tenha agravado a questão para o Brasil, cujas leis são severas para coibir o desembarque de dejetos estrangeiros. Mas nem todas as cargas ilegais acabam nas garras da Receita e do Ibama.


Procurados pela Sputnik Brasil, o Ibama e a Receita Federal não forneceram dados nacionais das cargas de lixo importado dos EUA e de outros países que foram rejeitadas ou apreendidas nos últimos quatro anos.


Casos recentes, no entanto, são fundamentais para se entender a magnitude desse problema.

Acreditando que estavam diante de uma arma, fiscais aduaneiros do Porto do Rio Grande abriram um dos 65 contêineres de 1.100 toneladas que lá haviam chegado entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020.


Embarcados no Porto de Everglades, em Fort Lauderdale, na Flórida, os recipientes tinham como descrição a importação de aparas de papel para reciclagem. Em seu interior, no entanto, havia lixo recolhido em toda a Costa Leste dos Estados Unidos.


</