Trabalho, lazer e o novo coronavírus
Por Cleber Dias
Afora inquietações sobre os riscos de contágio e os efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus, a situação também tem suscitado reflexões a respeito do futuro. Passada a crise, as sociedades poderão retomar as atividades realizadas antes?
Preocupações com o risco de colapso do tecido social diante de catástrofes ambientais, desemprego estrutural, crescente desigualdade de renda ou mesmo a inviabilidade da economia de livre mercado já vinham ocupando certas pautas de discussões. A pandemia impôs esses assuntos na ordem do dia.
Ideias que vinham sendo postas de lado ou mesmo ridicularizadas voltam agora não apenas a serem consideradas, mas a serem postas em prática. Governos ampliam seus orçamentos através do endividamento e da emissão de moedas. Provimentos de serviços públicos de saúde, de assistência e de renda básica são disponibilizados. Onde antes diziam não existir alternativas, as alternativas se multiplicam.
Um dos componentes a serem consideradas neste “novo normal” diz respeito ao modo como trabalhamos, com amplas consequências sobre o modo como gozamos ou deixamos de gozar a vida. O imperativo de gerar crescimento econômico, sob a crença de que é o excedente monetário o principal elemento a garantir uma vida boa, tem exigido cada vez mais dedicação ao trabalho.
A realização da garantia de uma vida boa através do ideal de crescimento econômico, contudo, tem exigido, paradoxalmente, o sacrifício de quase todo o resto. Aquilo que poderíamos chamar simplesmente de vida, para já não falar de uma vida boa – o descanso, as horas de sono, o cuidado dos filhos, o encontro com os amigos, o convívio com a família – aparece, dentro deste ideal, como uma espécie de resíduo ou ruído que atrapalha o trabalho e o enriquecimento.
O trabalho realizado com vistas a acumulação de riquezas tornou-se um fim em si mesmo. Não é o trabalho propriamente o que se valoriza, mas uma modalidade particular de trabalho, qual seja, o trabalho vendido em troca de dinheiro. O trabalho ainda não convertido em mercadoria, quer dizer, aqueles realizados sem remuneração, como as tarefas domésticas, muitas vezes sequer são concebidos como trabalho. Na linguagem cotidiana, alguém que se dedique integralmente aos cuidados domésticos frequentemente será visto como alguém que não trabalha.
Uma das consequências dessa valorização extremada do trabalho remunerado em dinheiro é a elevação geral do número de horas trabalhada e também da intensidade com que se trabalha, o que, por sua vez, diminui o tempo para o lazer e para o descanso. Pesquisas em vários países indicam que desde os anos 1970 e 1980, depois de algumas décadas de redução, o tempo médio dedicado ao trabalho remunerado tem aumentando, apesar ou talvez por causa da estagnação ou as vezes da redução dos rendimentos do trabalho. Por outro lado, estima-se que o tempo consumido pelo sono pode ter diminuído cerca de 3 horas e meia entre o início do século 20 e os dias atuais.
Atualmente, muitos trabalhadores têm uma vida semelhante à de presidiários em regime semiaberto: passam o dia trancados em locais onde não há possibilidade de se ausentar, com o direito de voltarem para casa à noite, desde que mantenham bom comportamento; do contrário, serão expulsos dessa situação que se apresenta como um “privilégio”, e serão então jogados no desemprego ou na indigência. Nos habituamos a classificar esse estado de coisas como “liberdade”.
Mais apenas do que aumentar em quantidade ou em intensidade, o trabalho também tem se tornado socialmente inútil e desprovido de propósitos relevantes. Este é um sentimento compartilhado por muitos trabalhadores, que muitas vezes não encontram sentido em suas ocupações. Atualmente, dado que o trabalho é um fim em si mesmo, já não importa se o trabalho executado é necessário ou relevante. Importa apenas que ele seja realizado.
Na verdade, o valor social atribuído a um trabalho, medido pela quantidade de dinheiro que se paga por ele, tende a ser inversamente proporcional a medida de sua utilidade. Ocupações como a de lixeiros, enfermeiros ou funcionários de supermercados, por exemplo, de fato indispensáveis, usualmente têm salários baixos ou muito baixos. Por outro lado, “gerentes”, “supervisores” ou consultores financeiros, cujo trabalho real geralmente é difícil saber qual é, tendem a ter remunerações mais generosas. Conforme a formulação do antropólogo David Graeber, no provocativo livro Bullshit Jobs (Trabalhos de merda), a precarização salarial das ocupações com óbvias utilidades sociais parece um tipo de sadismo coletivo: o momento em que boa parte de uma sociedade implicada em tarefas dispensáveis e irrelevantes pode manifestar seu ressentimento com aqueles dedicados a trabalhos inegavelmente necessários, punindo-os através de baixos salários, pouca estima e uma vida degradante.
Meditar sobre trabalhos socialmente úteis ou inúteis implica um esforço em priorizar aqueles que devem ser mais incentivados e os que podem ser reduzidos. Cogitar que certas ocupações são socialmente inúteis descortina a possibilidade de dedicar menos tempo ao trabalho, na medida em que o esforço produtivo geral se concentre no que de fato é reconhecido coletivamente como necessário. Concentrar o trabalho naquilo que é de fato relevante pode diminuir o volume de tarefas a serem socialmente realizadas, uma vez que haverá menos trabalho inútil a ser realizado, liberando, assim, o tempo atualmente consumido por esforços estéreis.
A diminuição da jornada de trabalho, por seu turno, além de criar a possibilidade de que mais pessoas tenham acesso aos trabalhos realizados em troca de dinheiro, ampliando oportunidades para o acesso a riqueza, tem ainda o potencial de disponibilizar mais tempo para outras atividades, incluindo o lazer, o descanso e aqueles trabalhos não remunerados e que têm crescentemente sido delegados a outros trabalhadores – e mais frequentemente a outras trabalhadoras. Assim, ao invés do almoço no restaurante, o preparo da própria comida em casa; ao invés dos bebês nas creches, o cuidado dos próprios filhos em casa; ao invés das faxineiras, a limpeza da própria casa. Em poucas palavras, em suma, o fim da vida terceirizada.
Uma organização do trabalho nesses termos obviamente teria muitas consequências sobre o tamanho, a estrutura e as possibilidades de crescimento de uma economia, além de todos os outros efeitos sobre a qualidade de vida e provavelmente até sobre a própria produtividade do trabalho – que até um certo ponto tende a aumentar na medida em que diminui o número de horas trabalhadas.
Todavia, nem toda mudança radical é uma piora e sempre existem alternativas. Não há nada de inevitável no modo como vivemos e outros mundos são perfeitamente possíveis. Além disso, muito pouco da nossa organização social está fora da órbita de influência de decisões tomadas no universo da política. A falta de ideias, o conformismo intelectual e certa estreiteza de pensamento – mais talvez do que más intenções ou falta de vontade política dos nossos representantes – estão entre alguns dos principais fatores a condenar boa parte da sociedade a uma vida desgraçada.
Definir o que é necessário ou supérfluo pode ser bastante subjetivo. No entanto, alguma dose de bom senso pode nos indicar sem muita controversa o que é luxo e o que é indispensável. Definir o que é um trabalho “necessário” pode ser uma daquelas coisas difíceis de enunciar, mas que todos nós reconhecemos quando estamos diante de um.
Se a medida de prosperidade de um povo for a quantidade de tempo livre disponível, então nossa civilização talvez estivesse entre as mais miseráveis de todos os tempos.
Mais que isso, nos termos da “teoria antropológica do excedente” (surplus theory), se a quantidade de tempo livre disponível de uma sociedade for uma condição para a inovação tecnológica e para a própria “elaboração da cultura”, então nosso cotidiano laborioso e sempre atarefado estará nos condenado ao fracasso civilizacional. Em meados do século 19, Nietsche já havia registrado um prognóstico nesse sentido, que soa agora como uma sombria premunição. Nas palavras dele, “por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”.
O excedente econômico pode oferecer mais tempo, mais consumo ou as duas coisas ao mesmo tempo. Em 1848, no seu Princípios de economia política, John Stuart Mill recomendava que o melhor uso que se poderia fazer da riqueza era a redução da jornada de trabalho e o aumento do tempo livre. Da época de Stuart Mill até meados das décadas de 1970, aproximadamente, isto foi parte do que aconteceu, no que economistas do lazer chamam de “efeito renda” (income effect), quando a elevação dos salários é convertida em favor de uma redução do tempo disponibilizado ao trabalho remunerado.
As sociedades afluentes do nosso tempo, além de ampliarem seus níveis de consumo através de uma elevação da oferta da força de trabalho que buscasse ampliar os rendimentos em meio a um contexto de elevação dos salários, no que se chamaria “efeito de substituição” (substituition effect), converteram também parte desta nova prosperidade em lazer, a ponto de Thomas Piketty, o célebre autor de O capital no século XXI, poder concluir que “todas as sociedades desenvolvidas escolheram, à medida que enriqueceram, trabalhar menos para desfrutar de mais tempo livre” (p. 90, o grifo é meu).
Desde então, uma combinação de estagnação econômica, concentração de renda, elevação dos níveis de endividamento e aumento do tempo dedicado aos trabalhos remunerados pôs fim ao sonho de uma “sociedade do lazer”, prenunciado por Keynes nos anos 1930 e por vários outros depois dele. Esse sonho foi substituído pela realidade de uma “sociedade do cansaço”, caracterizada pelos excessos, pela agitação, pela histeria, pelo hiperestímulo, pela superatividade, pela inquietude, pela excitação neurótica, pela depressão e pelo trabalho ininterrupto.
Sem um salto tecnológico capaz de superar as atuais barreiras energéticas e ecológicas, tende a aumentar a pressão política sobre o projeto socialdemocrata de conciliação de classes, em que certa redistribuição de renda é oferecida aos trabalhadores em troca do arrefecimento de questionamentos mais gerais ao arranjo do sistema produtivo. A manutenção desse pacto, porém, é dependente de crescimento econômico, seja por meio de ganhos efetivos de produtividade, por meio de dívidas ou por meio do excesso de trabalho. Todas essas alternativas têm sido experimentadas há mais de um século, mas parecem dar crescentes sinais de esgotamento.
Estagnação econômica em uma sociedade democrática, onde eleitores podem manifestar suas expectativas por meio do voto ou do veto, tende a exacerbar os conflitos distributivos. Quais grupos renunciarão parte de suas receitas em favor dos demais e por quais meios: menos lucros, mais trabalho, menos serviços públicos, mais redistribuição de renda por programas de assistência, alguma outra alternativa? A crise desencadeada pelo novo coronavírus parece apenas ter acelerando dinâmicas ao redor dessas encruzilhadas, que já estavam em curso. O modo como nos relacionamos com o tempo, no trabalho ou no lazer, possivelmente permanecerá no centro deste conflito.
Há razões para acreditar que um modo de vida diferente emergirá depois da crise – supondo que a crise será superada um dia. A experiência de quase morte frequentemente provoca uma ampla transformação no modo de encarar a vida. A valorização dos momentos de lazer, em detrimento da usual dedicação ao trabalho, é uma das transformações habituais depois de experiências desse tipo (veja-se a esse respeito a tese de doutorado de Claudia Franco Monteiro, O lazer como afirmação das identidades no timing da finitude).
O confronto de uma civilização inteira com a iminência da morte pode desencadear uma reação análoga. Além disso, a nossa própria consciência coletiva do tempo, habituada à previsibilidade ou à ilusão de previsibilidade, precisou agora conformar-se com a incerteza sobre o futuro, o que tende a ter efeitos sobre a maneira como concebemos nossos trabalhos e nossos lazeres.
Cleber Dias é professor do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da UFMG.
Texto publicado originalmente no Blog História(s) do Sport da UFRJ:
Acesso em 17/05/2020.
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