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Afagos da memória e centelhas de esperança: o significado político e simbólico dos 40 anos dos CIEPs

Waldeck Carneiro*


Não creio que haja efeméride, neste ano de 2025, na área de educação, mais importante do que o aniversário de 40 anos de inauguração do primeiro Centro Integrado de Educação Pública (CIEP), entregue pelo governador Leonel Brizola à sociedade fluminense e ao Brasil, no dia 8 de maio de 1985: o CIEP Presidente Tancredo Neves, no bairro do Catete, na Cidade do Rio de Janeiro.

Por várias razões. Em primeiro lugar, porque o CIEP era o símbolo da revolução pela educação, politicamente liderada por Brizola e epistemologicamente e pedagogicamente conduzida por Darcy Ribeiro. Tudo isso ambientado em um cenário moderno, futurista e criativo, idealizado pela genialidade arquitetônica de Oscar Niemeyer.

Em segundo lugar, porque a revolução educacional simbolizada pelos CIEPs era um contraponto contundente ao fracasso retumbante das elites brasileiras na área educacional: relegaram às classes trabalhadoras, em matéria de educação, quando muito, “a caridade mais barata que tivesse”, como afirmou Darcy. Aliás, fracasso em termos, pois, numa perspectiva crítico-dialética, o projeto hegemônico de dominação das mesquinhas elites brasileiras residia - e ainda reside -, sem dúvida, na negação da educação emancipatória ao povo. De novo, com Darcy: “a crise da educação no Brasil não é uma crise, mas um projeto!”.

Em terceiro lugar, porque a política educacional estruturada nos CIEPs era uma deliciosa afronta, um maravilhoso gesto de ousadia, à ditadura civil-empresarial-militar, que ficou no poder até praticamente a véspera da inauguração do primeiro Brizolão, alcunha dada pelo povo aos CIEPs, posteriormente incorporada à sua denominação oficial. Em outras palavras, a surpreendente vitória eleitoral da chapa Brizola/Darcy, nas eleições de 1982, no Rio de Janeiro, que a ditadura e as elites que lhe davam sustentação tentaram solapar - como possivelmente fizeram contra Pedro Simon, no Rio Grande do Sul, naquele mesmo ano -, desestabilizou politicamente o domínio militar, que já sofrera dura derrota nas eleições para o Congresso Nacional em 1974. Em 1982, além de Brizola, também se elegeram candidatos de oposição à ditadura em estados importantes, como Franco Montoro (São Paulo) e Tancredo Neves (Minas Gerais).

Ainda nessa linha, a vitória eleitoral de Brizola, em 1982, o antológico Encontro de Mendes-RJ, em 1983, a concepção e a execução do projeto dos CIEPs, no biênio 1984/1985, sob as barbas da ditadura, representavam um gesto de emancipação política significativo, após, até então, quase 20 anos de ditadura - 18 anos e meio, quando Brizola se elegeu governador do RJ, pela primeira vez.

Em quarto lugar, porque foi um período em que cerca de 40% do orçamento estadual foi canalizado para investimentos em educação, patamar jamais alcançado por nenhum governo, federal, estadual ou municipal, nem antes nem depois do primeiro governo Brizola no Rio de Janeiro. E isso não é pouco, afinal, a melhor forma de expressar compromisso com uma pauta, por parte dos governos, é por meio da execução orçamentária. Os recursos retóricos e simbólicos, como discursos e gestos políticos, também podem revelar compromissos, mas, tangível, palpável, efetivo só mesmo o compromisso traduzido no emprego prioritário de recursos orçamentários e financeiros em uma determinada agenda, projeto ou iniciativa.

Em quinto lugar, porque os dois Programas Especiais de Educação, no primeiro (1983-1987) e no segundo governo Brizola (1991-1995), reuniram boa parte do que havia de melhor na intelectualidade pedagógica do Rio de Janeiro. Nomes que se consagraram pedagogicamente e academicamente durante e depois daquela experiência. Sobretudo educadoras, mulheres intelectuais, professoras e pedagogas, como Maria Yedda Linhares, Lia Faria, Lúcia Velloso, Tatiana Memória, Cecília Goulart, Ana Maria Cavaliere, Ana Maria Monteiro, Alice Romeiro, Magda Sayão, Ângela Fernandes, entre outras, figuras inscritas para sempre na história da educação fluminense. 

Em sexto lugar, porque a resistência, a oposição e o apagamento praticados contra os CIEPs, antes, durante e depois de sua construção, por diferentes lideranças elitistas e (neo)conservadoras, sempre foram o melhor indicador de que o projeto era uma “semente de dragão”, nas palavras de Leandro Konder, quer dizer, tinha potencial para enfrentar, de modo estrutural, as desigualdades atávicas, profundas, naturalizadas, socais e educacionais, que marcam a sociedade brasileira, desde sempre. O maior exemplo dessa resistência talvez seja a reação de Roberto Marinho, o todo poderoso dos oligopólios da mídia no Brasil, que criticou o projeto dos CIEPs, propondo, em seu lugar, que Brizola fizesse “algumas escolinhas”, se assim desejasse, mas nada tão imponente, como nos mostrou em publicação aqui mesmo, no Toda Palavra, o editor Luiz Augusto Erthal.

Ora, essa reação das organizações Globo, expressa por seu principal dirigente, declina com nitidez a preocupação, o incômodo e até o ódio das elites brasileiras contra governantes que resolvem investir parcelas expressivas do orçamento público em projetos destinados às classes populares. Guardadas as diferenças conjunturais, doutrinárias e de estilo, Getúlio Vargas, João Goulart, Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva pagaram caro por isso, até com a própria vida, com a própria liberdade ou com a perda de seus mandatos constitucionais. 

No governo que sucedeu a primeira administração estadual de Brizola, liderado por Moreira Franco, após derrotar o próprio Darcy Ribeiro nas eleições de 1986, com espantoso apoio de setores da esquerda, tratou-se de interromper o projeto dos CIEPs e, mais do que isso, de apagá-lo da memória fluminense. A atitude deliberada de deixar os CIEPs abandonados à própria sorte, decompondo-se fisicamente a olho nu, passou a cumprir também um papel na desconstrução simbólica do projeto, de modo que aquelas escolas, antes emblemáticas e majestosas, fossem, pouco a pouco, assimiladas como escolas decaídas, rejeitadas peremptoriamente pelas classes médias e até mesmo pelas famílias pobres. Em outras palavras, além do garrote nos investimentos, que causava severos danos materiais nos CIEPs, produzia-se simultaneamente um dano simbólico, por meio da representação negativa daquelas escolas públicas, induzida pelas elites na população. A tal ponto que famílias chegavam a “ameaçar” seus filhos, caso praticassem desobediências, de ser matriculados em um Brizolão, como forma de castigo.

Durante o segundo governo Brizola, retomou-se o esforço político-pedagógico em torno dos CIEPs, chegando-se, então, à impressionante marca de 508 CIEPs construídos, somados os dois governos. Deu-se, todavia, logo em seguida, um novo ciclo de desmonte do projeto, numa traquinagem da história: o governador Marcello Alencar (1995-1999), correligionário de Brizola ao longo dos anos 1980, prefeito da capital, na sua primeira vez como alcaide do Rio, por designação de Brizola - depois Marcello foi eleito para a prefeitura do Rio, em 1988 -, tornou-se algoz dos CIEPs, usando, como principais estratégias de desmantelamento, a descaracterização de seu projeto de educação integral e a municipalização daquelas escolas estaduais, ou seja, desvencilhando, gradualmente, o governo estadual daquela responsabilidade, no contexto da implantação de uma política estadual de desestatização, à feição do que fazia Fernando Henrique Cardoso na governança federal.

Com este texto, não pretendo tratar os CIEPs como projeto irrepreensível, inquestionável ou, muito menos, perfeito. Como toda experiência humana, evidentemente houve limites, deslizes e imperfeições. Alguns analistas já trataram disso, como Luiz Antônio Cunha e Dácio Tavares Lôbo Júnior. Contudo, mesmo as críticas mais pertinentes não são capazes de obscurecer a magnitude política, pedagógica, arquitetônica, social, cultural e simbólica desta que foi a principal e mais genuína experiência brasileira de educação integral. E uma das mais veementes demonstrações que um governo poderia dar de compromisso com a emancipação das classes populares e com o enfrentamento às elites atrasadas, mesquinhas e egoístas.

Hoje, na data exata de celebração dos 40 anos dos CIEPs, fiz questão de participar da singela solenidade promovida pela direção, profissionais da educação e estudantes do CIEP Presidente Tancredo Neves. Singela, mas carregada de sentidos, significados, memórias e potências. Fiquei tomado de emoção, com o peito apertado, a garganta travada por um nó: a aluna que discursou com brilho, a professora reconhecida por quase 40 anos de magistério naquele CIEP, as professoras e estudantes fazendo arte, dança, música, jornalismo, produzindo e socializando conhecimentos, no chão da escola pública. Diretoras dedicadas, que dirigem, agregam e formulam, mas também carregam cadeiras, cuidam dos detalhes, colocam a mão na massa. As famílias ainda com olhos de esperança, lembrando Darcy: “a alfabetização é uma ponte da miséria para a esperança”. O comensalismo ao final da solenidade, os quitutes, o esmero, o carinho e o cuidado, tudo feito ali, pela comunidade escolar. A escola pública pode muito. Já faz muito, com muito pouco. Foi exatamente isso que fez o CIEP assustar as elites. Imaginem quatro décadas seguidas de CIEPs pelo Brasil afora: que país seríamos hoje?

Por tudo isso, dar o máximo de visibilidade aos 40 anos dos CIEPs é um imperativo político: um gesto de memória, mas também de esperança na revolução educacional! Ao contrário, tratar essa data como algo banal no calendário brasileiro é reincidir na estratégia de apagamento de uma das mais lindas páginas da história da educação brasileira; de um modelo de política pública comprometida com os mais vulneráveis e de um exemplo de enfrentamento corajoso às desigualdades e às elites que trabalham para perpetuá-las.


 *Professor Titular da UFF e Coordenador Geral do Fórum Estadual de Educação do Rio de Janeiro.

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