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Viagens

Por Railane Borges

Pixabay
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Era nossa primeira vez indo em direção ao sul do país. Preparamos nossa mochila e saímos pela vida. Tínhamos tirado essa viagem da cartola. Quinze horas, contando com as paradas. Os meninos acharam bom que, começando às quatro da manhã, chegaríamos ainda no mesmo dia. Eles não sabiam para onde estavam indo, mas toparam, como excelentes exploradores que são. Com o tempo, os nossos truques deixaram de funcionar e eles passaram a acordar nas paradas, chegadas e saídas, independente de quão suaves fossem nossos movimentos. Agora tínhamos dois participantes conscientes e atentos a cada etapa das viagens.


Acostumados ao Nordeste, pegar a BR no sentido oposto tem suas vantagens. De cara pudemos notar que a conservação, a sinalização e o suporte por todo o trajeto foi infinitamente melhor. Os pedágios também apareceram mais e custavam mais caro.


Chegando perto da fronteira de São Paulo com o Paraná, surgiram os primeiros sinais de que adentrávamos uma terra desconhecida. Nos banheiros, em cima das torneiras, se lia em grandes avisos: “Não jogue erva de chimarrão no ralo da pia”. Nesta mesma parada aproveitei para agasalhar os meninos, pois já se sentia uma brisa mais fresca em relação ao Rio. Resolvi não levar brinquedos para distraí-los dessa vez. Queria que experimentassem as conversas, as músicas, as paisagens.


De tanto que falávamos, quase perdemos a tenda de pinhão cozido. Mas nosso piloto conseguiu parar a tempo no acostamento. Nenhum de nós tinha provado antes e por isso aquela era uma parada imperdível. O aroma do pinhão assado à lenha por si já era uma experiência à parte e depois me lembrou a castanha portuguesa, uma tradição de Natal na minha família. Se foi o sabor da infância ou de memórias afetivas sendo formadas eu não sei, mas o Sul me ganhou ali. Fomos recepcionados no local da estadia pelo gatinho mais manso e carinhoso do universo. Tentamos descansar o mais cedo possível para encarar a grande surpresa que preparamos para o dia seguinte.


Quando as crianças de fato dormiram, depois de extravasar o êxtase de finalmente terem chegado ao seu destino e me posto a pino, rodando incontáveis vezes ao redor da habitação, olhei para eles ali, tão serenos em seus sonos tranquilos, embalados por roupas de cama quentinhas em um chalé de madeira aconchegante e pensei na alegria e no privilégio de poder realizar essas aventuras em suas respectivas companhias.


Os meninos não sabiam, mas estávamos acerca de quinhentos metros do maior parque de diversões do Brasil, o Beto Carrero World. Em duas semanas teríamos uma viagem de trabalho e, portanto, achamos que seria bom ter esse tempo de qualidade antes de embarcar em uma nova jornada no audiovisual.


Não foi até estar na varanda olhando o céu bem à toa no silêncio da noite e pensando na condição humana, que algumas lembranças da semana começaram a reaparecer em minha mente de forma encadeada. Pode ser que isso soe totalmente aleatório. E provavelmente soará. Eu mirava a escuridão e pensava no dia em que o mais novo nasceu. Aquele moleque rebelde tinha uma circular de cordão ao redor do seu pescoço e isso não o atrapalhou em nada.


Só então me dei conta de que um dos grandes nomes do país na defesa do parto normal e do fim da violência obstétrica tinha sido recentemente condenado a 14 anos de prisão por homicídio doloso depois de perder um bebê 24 horas após o nascimento. Doutor Ricardo Jones. Uma verdadeira referência.


Eu pari meu terceiro filho depois de ter passado por outras duas cesarianas. Era o meu maior desejo. Difícil ver o parto normal e fisiológico atravessar esse momento de críticas e de fortalecimento da sociedade cesarista. Não é que eu não goste de cesarianas. Indicadas corretamente, elas são necessárias. Eu não gosto é do controle sobre os corpos das mulheres. Nem de perseguições a modos divergentes do estabelecido pelo status quo.


Quando dona Rita me falou pela primeira vez sobre um filme que eu precisava assistir, eu não imaginava ainda que ele se tornaria o centro da minha nova desconfiança.


Ela me contou que se tratava da história de uma mulher vivendo o luto após perder seu bebê durante o parto. O julgamento do médico tomava grande parte da narrativa, assim como o sofrimento da mãe. O filme estava no top 10 da semana, entre os mais assistidos da plataforma.


Primeiro achei curioso, mas logo comecei a achar que não podia ser apenas mais uma coincidência.


Então chegou o domingo e de repente a médica mais procurada da Zona Oeste, a obstetra dos sonhos de muitas mulheres que conheci, aquela cujo médico de sua equipe eu mesma contratei para o meu próprio pré-natal e parto, estava sendo denunciada em uma extensa matéria no Fantástico.


Eu não posso me manifestar a favor dessa profissional. Não a conheço. Eu não tenho essa competência. Não posso falar sobre ou dimensionar a dor dessas famílias que perderam seus filhos. Não sei o que a investigação irá concluir.


Ainda assim, a coincidência nesse ataque em massa à imagem do parto normal natural ou não, em que local com qual profissional, é apenas mais uma barreira sendo levantada entre nós e os direitos reprodutivos das pessoas com útero.


A minha mente funciona assim, desse jeito meio estranho. Pode ser o cansaço da viagem até aqui ou só o tempo lento de digestão dos assuntos à medida em que eles aparecem. A conjuntura de ataque ao parto pode ser uma viagem dentro da viagem, uma suposição descabida de uma mulher cansada. Ou não. Da forma como eu vejo as coisas, apostaria mais nisso.


Nesses tempos os direitos das mulheres e das minorias, no geral, se tornam muito flutuantes. O mundo está se dividindo e é preciso compreender quem somos para definirmos em que lado estamos. Mas não agora. Agora é preciso descansar, pois para amanhã ainda gesto sonhos nesse ninho de puro amor.


*Railane Borges é atriz e cineasta

2 Kommentare


Você consegue escrever o dia a dia de uma forma natural e ao mesmo tempo nos leva a refletir temas sérios da nossa coletividade. Penso que você tem razão sobre o parto. Há algum tempo, por vários motivos a cesárea, praticamente, se tornou "normal" para as mulheres. Mesmo quando não há necessidade. E a mulher que quer o parto normal, na maioria das vezes, tem dificuldades para ser aceita e realizar o parto normal.

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acho incrível como nos textos conseguimos ler uma passagem do cotidiano e rapidamente, mas com delicadeza e facilidade passarmos para a reflexão. Não posso opinar de forma aprofundada sobre o núcleo por não ser meu lugar de fala, porém, estamos sim vivendo tempos de direitos flutuantes, ainda mais daqueles que tiveram que brigar para terem eles. O parto, que era para ser algo íntimo, sagrado e pensado com zelo e para que seja tudo tranquilo para quem irá passar por ele é mais um dos momentos desrespeitados em muitos casos. Muito bom o texto!

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