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Deu certo, porque deu errado

Por Railane Borges


Quando eu cheguei ao ensino médio vi muitos de meus amigos lutando com suas incertezas. Eles não estavam maduros o suficiente para escolher suas vidas profissionais, tinham questões existenciais, inseguranças lhes tirando o sono, a pressão das grandes provas se aproximando. À beira de completarem seus 18 anos, além de não conhecerem a realidade de trabalho das profissões, as falácias, os clichês proferidos e as verborragias dos professores e familiares neste período acabavam sempre gritando mais alto.

Pixabay
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Para a minha geração, ser médico(a), engenheiro(a) ou advogado(a) parecia o único caminho possível para o sucesso. Ser bem sucedido, então, seria a síntese da boa fortuna, e eu não estou falando de sorte, estou falando de dinheiro. Aqueles com menor ganância ou escopo de conteúdo poderiam ficar com as vagas menos concorridas e selar carreiras na pedagogia, na fisioterapia, ou em qualquer outra “ia” que fosse menos disputada.


Esses, resilientes, compreendiam sua parte na massa de trabalhadores assalariados que iriam compor as classes C e D, a não ser que algo extraordinário topasse seus caminhos, o que raramente acontecia, como sugeria etimologicamente o adjetivo. Nosso futuro já estava decidido naquele ponto. Aquilo me fez sentir um pouco boba, pois ali percebi que diferente do que todo mundo dizia, não era verdade que a gente podia ser o que quisesse. “Vá atrás dos seus sonhos”, eles disseram. Esqueceram das palavrinhas pequenas no fim de qualquer contrato. (*Dos sonhos que estiverem ao seu alcance*)


Vi meu grande amigo naquela fase perder o brilho dos olhos aos poucos enquanto se dava conta que seu amor pela física não o faria ter capacidade de cursá-la em nível superior. Esforçado, mas sem os resultados esperados, o que sobrou foi ajudar seu pai em seu pequeno escritório de contabilidade fazendo o fechamento de contas de igrejas cristãs de bairros metropolitanos. Da última vez que escutei falar nele, ainda estava por lá.


Outra coisa que me diziam muito era que algumas pessoas desde muito cedo já sabiam exatamente o que passariam o resto da vida fazendo, e eu achava que este era o meu caso. Eu não tinha nada nesta idade além da certeza de que precisava continuar fazendo o que sempre fiz desde que me entendo por gente.


Começou aos quatro anos nas viagens de férias em família. Eu passava horas sozinha planejando espetáculos inteiros. Até que junto a um dos meus “tios” dado pela vida e não pelo DNA, improvisávamos um teatro organizando todas as cadeiras disponíveis e obrigando os parentes e amigos a se sentarem para assistir ao espetáculo, compondo assim o meu primeiro público. Tendo à mão os mais diversos figurinos, fossem toalhas na cabeça, roupões ou sapatos alheios, eu apresentava esquetes com início, meio e fim onde desempenhava monólogos ou mesmo diferentes personagens que já era capaz de criar.


A ideia de nascer e morrer como a mesma menina agarrada ao chão de São Gonçalo, nas horas intermináveis sob a égide do meu próprio nome e sobrenomes, parecia-me um destino inglório que eu jamais aceitaria sem luta.


Aos oito anos a artista em mim foi descoberta. Em uma manobra de rara ousadia, a menina de São Gonçalo ganhou uma bolsa no Teatro Villa-Lobos, em Copacabana! Era o início do propósito. E dos testes de elenco intermináveis em que tive que aprender a perder tão mais que ganhar. Foram duras lições.


Aos 11 anos, passei em um teste de comercial, meu primeiro institucional, algo raro e muito comemorado por mim, pois não era considerada dona de uma “beleza singular” pela agência, como eram catalogadas as crianças com algum diferencial em sua aparência, fosse cabelo ruivo, olhos claros, ou traços de alguma etnia específica. A dona da agência dizia que eu tinha uma beleza comum e que eu só devia fazer testes que tivessem texto.


Para mim estava tudo certo.


Foi naquele comercial que estabeleci minha primeira relação com o meio. Escalada por uma excelente produtora de elenco para a maior produtora de cinema do RJ, tive o privilégio de ser dirigida por um grande cineasta. E foi ele que mesmo sem saber, mudou o rumo do meu futuro.


Quando eu pisei naquele set, senti de novo a adrenalina e os arrepios de quando estreei no palco do teatro, quando mil fagulhas tomaram o meu corpo. Fagulhas douradas que brotaram dentro de mim, depois irradiaram para fora de mim e ganharam os céus do centro do RJ naquela noite. Um evento mágico, de proporções inesperadas, que extravasou e me fez sentir parte de tudo. Eu era uma criança mística e aquele era o sinal divino que eu tanto esperava. Então, meu mundo virou.


Enquanto olhava estarrecida para o ballet dos profissionais do audiovisual, os cabos se desenrolando, as luzes sendo montadas, os assistentes e diretores se movimentando e batendo seus planejamentos, recebi da produção meu lanche noturno e resolvi dividi-lo com alguns meninos de rua igualmente curiosos e encantados que se aglomeravam por ali enquanto esperavam a ação começar.


A cena não filmada, que acontecia naturalmente na calçada fez o diretor chegar perto de mim. Com um sorriso largo no rosto ele me perguntou: “Você realmente gosta disso?” E eu respondi: “Como nada mais nesse mundo”. “Então vou te dar uma dica: para ser a melhor atriz que você puder, você precisa conhecer cada parte do set, para saber usar a iluminação a seu favor, se deslocar pelas marcações, para saber se colocar para a câmera, entende? Se tiver a oportunidade, faça cinema.”


Podia ter sido apenas uma conversa jogada fora em uma esquina qualquer, perdida no tempo, mas não para mim. Não no dia em que eu senti pela primeira vez que estava no lugar certo. Eu jamais esqueci aquelas palavras. E a coisa foi de vento em popa. Nem um ano depois eu já estava trabalhando com a Discovery Kids e na sequência assinando meu primeiro contrato com a maior emissora do Brasil.


Nem quando eu me formei na faculdade de cinema e senti o gosto de realizar um plano milimetricamente tramado para mim, nunca tinha passado pela minha cabeça que a vida poderia mudar tudo. E mudou.


Quando meu primeiro filho nasceu eu tive que me adaptar. Minha trajetória no mundo normativo tinha acabado de começar. Eu levei as duas coisas juntas por muito tempo. As contas e o sonho. Tanto quanto pude. Não adiantava ter nascido conhecendo minha aptidão, meu talento, meu caminho. A trama social complexa da realidade não aceitava os sonhos, nem tinha nervos para artistas.


Trabalhei em shoppings, eventos, comerciais, projetos independentes, produções culturais. Fui amadurecendo e construindo novos objetivos. Quando o meu segundo filho nasceu e me tirou mais uma vez do tempo regulamentar, eu tive que me perguntar quem eu era, afinal.


Então voltei ao cinema. Não atuando, mas escrevendo e dirigindo. E faz anos estou metida neste vértice inesperado onde a vida me pôs por ação do imprevisível. As coisas nunca acontecem da forma como planejamos.


Hoje, enquanto vejo meu próprio filho atravessar o terceiro ano do ensino médio, me pergunto o que o mundo fará de seus sonhos. Que caminhos ele terá que trilhar. Mas o mais importante: se saberá se adaptar para dar o seu melhor, onde quer que esteja.


Isso me leva de volta para dentro da sala da 3A. Terceiro ano de ensino médio, dia de simulado. Como todos os meus amigos, eu também sou só uma menina que não faz a menor ideia de como será sua vida em vinte anos.


Hoje, depois de trabalhar por horas em um roteiro, de tantos momentos em frente a folhas em branco, me olho e sou incapaz de me imaginar sem escrever. E como o grande Rubem Alves, ouso sentir: “cheguei onde cheguei depois que tudo que planejei deu errado. Tornei-me escritor por acidente”.


Apenas continue a caminhar.


*Railane Borges é atriz e cineasta.

5 Comments


Vislumbrei trabalhar em gestão ambiental e acabei cursando a gestão pública.

Hoje desempenho um trabalho importante na área ambiental com a conscientização da sociedade na destinação correta dos resíduos. 💚

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Bom te ler, Railane. Apenas continue a escrever.

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ricalia
Feb 17

Lindo texto!!! Seguir a sua caminhada é gostoso de ler. Vc nos prende aos seus textos!!!

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Que trajetória linda!

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Adoro seus textos, sempre muito bem redigidos e inteligentes! Cada dia que passa, fico no aguardo para as novS incríveis leituras! Parabéns Rai! Mais uma vez, texto incrível!

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