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Folga sem folga

Railane Borges

 

A rotina é um lugar engraçado em que se perder. Quando aperta, tudo o mais fica de lado para que apenas ela rasgue caminho através dos dias, atropelando a inércia pura e simples, afogando a utopia e disputando o tempo com o sono, a fome e o cansaço (que sempre vencem a disputa entre os desejos brutos e instintivos a guiar um organismo humano).

O tempo estica e encolhe. A estrada é longa, os horários mesmo assim são apertados. Tantos takes, tanta chuva, tanto equipamento, reposicionamento de câmera. Os sets de SÃO PAULO tem um ritmo diferente. Eu ali no canto só observando e absorvendo, como diz um amigo meu de muitos anos. Me valendo do anonimato, de ser só mais uma na multidão, alguém que chega no último dia, faço o que tenho que fazer e volto para casa, quer dizer, para a estrada, com a sensação de dever cumprido. 

Depois de semanas de trabalho e longos planejamentos e estudos, chegar em casa tem outro sabor. 

O mundo continua respirando por aparelhos, e eu continuo provendo oxigênio suficiente ao meu corpo para correr atrás dos sonhos entranhados no meu peito. 

Tem coisa que nada nos rouba. As coisas que são da natureza do sujeito. 

Voltei para casa e tinha perdido por um dia a florada da minha flor favorita. Cheguei a tempo de pegar o resquício do aroma no ar do jardim. 

As pétalas fechadas.

O quase testemunhar, mas perder por um triz. 

Muito se perde por um triz. Mas eram flores.

Os maracujás estão caindo aos montes. Amarelos e pequenos. O pé virou uma farra de lagartas de todas as cores, borboletas, abelhas, percevejos exuberantes, beija-flores e gafanhotos. Não consigo parar de admirar com uma absoluta ternura esses animais, que vêm aos montes à nossa casa. 

A amoreira voltou a dar frutos depois de um longo período do castigo que nos impôs quando optamos pela última poda. O chão com pontos roxos vivos em torno da piscina é indiscutivelmente lindo. Nada é como antes. O clima mudou. As frutas mudaram. Mas a mágica está viva.  Aproveito para um breve respiro, enquanto preparo o corpo e a mente para as jornadas que vêm por aí. 

E foi nesse recolhimento planejado e pacífico, que voltei a me deparar com as mazelas do mundo externo. Como não citar minha indignação com o curso das coisas? Assisti com náuseas a atitude misógina, preconceituosa e sem a menor coerência de senadores da República com a ministra Marina Silva. 

Os mesmos que dias antes trataram a pão de ló a influenciadora que vende a própria família e lucra com a desgraça alheia? As cenas toscas de descaso com a vida humana e bajulação extrema deram lugar ao circo de deselegância e machismo, protagonizado por senadores que parecem desconhecer sua desimportância para este país. 

Uma mulher como Marina Silva, que tem um enorme legado construído com muito esforço, muita luta, estudo e trabalho ao longo de décadas, jamais poderia se sentar ao lado de indivíduos de tão baixa condição cognitiva e percepção do mundo. Foi duro. Sinceramente, ainda é.

E então, a semana finaliza enquanto assisto num misto de choque e raiva, a prisão de um artista de origem pobre, que realiza shows em territórios periféricos (onde há presença de traficantes, sabidamente). Isso não faz dele criminoso. Crescer em uma comunidade dominada por uma facção é algo real e normal para dezenas de milhares de pessoas. Isso não faz delas criminosas. 

Se sou entusiasta da arte do Poze? Não importa. Mas claro que homem negro, egresso do sistema penal, favelado, ao comprar um carro de um milhão de reais e ocupar um imóvel em um lugar chamado “Condomínio das Mansões”, incomoda de forma extrema as peças componentes do racismo estrutural.

Sua prisão e exposição, da forma como tem sido feita, só demonstra e escancara a forma como o sistema trata a pessoa baseado em quem ela é, na cor da sua pele, nas suas origens. Em contraponto ao ancião senil, ex-parlamentar, que, após atirar e jogar granadas numa equipe de policiais federais, foi abordado de forma quase festiva por outro policial, sorridente e solícito.

Poze se mostra indignado e perseguido. Com absoluta razão. Mas cabe a ele fazer algumas perguntas ao secretário de Polícia Civil, que surgiu tão eloquente no pirotécnico “back drop” da corporação na midiática entrevista coletiva.

O  delegado acredita ser crime vir da favela e ainda manter laços fortes com o local onde nasceu e foi criado, bem como com os amigos de infância?

O que o delegado sugere que ele faça, quando perceber na plateia de seus shows, homens armados de fuzil? É para pedir para que os “fuzileiros” se retirem?

Delegado, por que aqueles fuzis estão nas mãos dos traficantes da comunidade? A sua Polícia não deveria dar conta de impedir que eles chegassem lá? Ou tem fábricas de fuzis nas favelas?

Ou ainda… o que eu tenho a ver com a incapacidade da Polícia de coibir o tráfico de armas?

E aí, senhor delegado, vou entender que a responsabilidade não é apenas da Polícia Civil, mas de todas as outras que compõe o arcaico sistema de segurança pública do Brasil.

É… a vida tem se mostrado deveras incoerente. E a sociedade compra as narrativas sem se preocupar minimamente em raciocinar a respeito.

Triste.

Mesmo as amoras parecem menores do que pareciam dez minutos atrás. O sabor das coisas muda cada vez que a realidade te rouba a paz que se buscava. 

As roupas na corda balançam ao vento, inertes a tudo. Deve ser bom ter algo que te segure enquanto o sol te esquenta até que você esteja leve, seco, pronto para voltar ao ponto inicial. 

Mas não temos.

E, por não termos, temos que ler sobre Marinas e Marlon Brendons, hackeadores de sistema, pessoas que ousaram ir longe, mesmo tendo vindo de onde vieram. 

Por isso temos que ser os chatos a falar sobre eles. A nos posicionar sobre o óbvio. 

E eu sempre prefiro os espetáculos vivos do quintal.  Se pudesse, me concentraria apenas na apresentação de esgrima entre beija-flores e mamangavas. Todos os dias, entre as 14h e as 16h30, sem falta. Mas eu não posso. Ninguém pode. O mundo não nos deixa.


Railane Borges é atriz e cineasta.

3 Comments


Texto incrível, correlações, análises e escrita das percepções do dia a dia sempre impecáveis! Adoro suas crônicas! Grande beijo do seu fã aqui!

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Amo suas crônicas Railane

Me identifico muito! Você é demais, sabia?

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Railane, sua crônica é um verdadeiro achado! A forma como você entrelaça a rotina, a natureza e as questões sociais é simplesmente genial. Seu texto é uma reflexão profunda e poética sobre a vida e as injustiças que nos rodeiam. Parabéns pelo seu trabalho!

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