Uma janela para a África - artigo de Lívia Apa
A colonização portuguesa na África, assim como no Brasil, deixou como principal legado a própria língua. Mas o maior contingente de falantes do português deixará de ser formado pelos brasileiros até o final deste século, devido às altas taxas de natalidade no continente africano e ao envelhecimento da população tanto na Europa como nas Américas, segundo projeções demográficas (Português será a língua mais falada na África até 2100).
Neste artigo exclusivo para o TODA PALAVRA, a pesquisadora da literatura lusófona africana, Lívia Apa, destaca a importância da descolonização da língua portuguesa naquele continente.

Por Lívia Apa*
A língua portuguesa é uma das línguas faladas no antigo espaço colonial africano de Portugal. Uma das muitas outras. Basta sair do espaço urbano em Angola ou em Moçambique, aterrar em Bissau, na Praia ou em São Tomé para logo entender o quanto é grande a diferença e a clivagem entre os conceitos de língua oficial e língua falada. As línguas africanas bantu e os crioulos de base portuguesa (r)existem nos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e basicamente são o que a maioria das pessoas falam no seu dia a dia. Acredito que seja a partir de aqui que devemos repensar a relação com a parte africana do “edifício” lusófono, descolonizando o mais possível a ideia de uma irmandade natural construída apenas à volta do fato que todos falam a mesma língua. O que une os países de língua oficial portuguesa é a antiga relação com Portugal, outrora colonizador, mas que ainda tece parte da sua política exterior na base de um imaginário que se alarga fora dos seus confins nacionais e que vê, já não no Brasil, mas nos seus antigos ‘territórios ultramarinos’, uma espécie de sua natural expansão geográfica construída exatamente em nome de uma língua que veicula também uma perniciosa ideia de cultura comum. Uma visão deste tipo responde, porém, a uma racionalidade apenas econômica, camuflada demasiadas vezes e em demasiadas formas, por uma ostensiva saudade de um tempo que já foi e que terminou em 1974 com a Revolução dos Cravos.
O Dia da África que se celebra no dia 25 de maio podia ser uma boa ocasião para repensar tal relação dentro do chamado espaço lusófono. Uma maior atenção para uma plena cidadania da diáspora do continente africano que escolheu viver a sua vida na antiga Metrópole, práticas de empoderamento da raiz africana da cultura nacional no Brasil, uma festa do orgulho das culturas nacionais nos PALOP, podiam ser formas de celebrar o continente africano espalhado nos países que têm o português como língua oficial e uma lusofonia onde não há donos nem centros, mas sim partes de uma comunidade unida por uma prática linguística que partilha traços comuns mas também muitas diferenças. E abrir uma janela para África.
*Escritora e tradutora italiana, trabalha na área dos estudos literários e culturais dos Países de Língua Oficial Portuguesa. Investigadora do Centro de Estudos sobre África Contemporânea na Universidade de Nápoles “L’Orientale”.