EDITORIAL: Rodrigo ultrapassa linhas perigosas
Atualizado: 6 de abr. de 2020
Por Luiz Augusto Erthal
O prefeito Rodrigo Neves conseguiu unir os cidadãos de Niterói, incluindo os vereadores que lhe fazem oposição na Câmara Municipal, e vem liderando com êxito, até agora, a luta contra a pandemia do coronavírus na cidade. A escalada da proliferação da doença está sendo contida e se mostra bem menor, por exemplo, do que na cidade do Rio de Janeiro. Niterói só teve até este momento uma morte confirmada, graças a uma política de rigorosa observação do isolamento social, reconhecida até mesmo fora do país.
A prefeitura também tem dado respostas rápidas às necessidades de aparelhamento da rede de saúde, preparando-se para o pior momento do enfrentamento, que se avizinha, e ainda no sentido de aplacar a crise econômica e social, socorrendo empresas e pessoas vulneráveis. Mas, no afã de defender a sua estratégia de combate, Rodrigo tem ultrapassado algumas linhas perigosas, relativizando princípios basilares da democracia que estão consagrados na própria Constituição brasileira.
Na noite de ontem (1/3) ele anunciou que iria fechar as fronteiras do município, de 4 a 18 de abril, à circulação de cidadãos das cidades vizinhas, montando 28 barreiras policiais nos acessos a Niterói. Justificou a ação, que desafia violentamente o direito de ir e vir, como parte da política de isolamento social. Por trás desse argumento está, porém, a sua enorme preocupação em proteger a rede de saúde do município de uma avalanche de pacientes provenientes de outras cidades, especialmente São Gonçalo, a segunda mais populosa do estado, com mais de um milhão de habitantes.
A preocupação não é infundada, mas a atitude o coloca na posição de quem está ansioso em fazer a escolha de Sofia, decidindo quem vai viver ou morrer entre irmãos que não se pode separar em função de limites urbanos ou até mesmo de uma pandemia.
Esse é o mesmo temor que o levou a oferecer uma transferência direta de dezenas milhões ao Fundo Estadual de Saúde para a construção, em parceria com o estado, de um hospital de campanha em São Gonçalo para 200 leitos, com o objetivo declarado de conter ali os pacientes da cidade vizinha. Na manhã de hoje (2/3), porém, ele teve de recuar, certamente premido pelos interesses da rede privada de hospitais da cidade - uma das mais importantes do país - e dos planos de saúde, cujos clientes não residem apenas em Niterói. Ao contrário, a ex-capital do estado se tornou nos últimos anos um polo de tratamento de saúde que atrai pessoas de todo o Leste fluminense e mais longe ainda.
Outra linha que o prefeito insiste em atravessa de forma incauta é o princípio da liberdade de imprensa. Se você está lendo este artigo agora é porque já aderiu, ao contrário de muitas pessoas - sobretudo as mais velhas -, aos meios eletrônicos de comunicação. Mas aqueles que foram acostumadas por toda uma vida à cultura do papel - talvez os que mais precisem agora de informações confiáveis - estão privados em Niterói desse produto fundamental - o jornal - simplesmente porque as bancas, ao contrário do que acontece no Rio e em praticamente todas as cidades brasileiras, estão proibidas de abrir.
Trata-se, na prática - embora não seja essa a intenção do prefeito, acreditamos -, de uma censura à imprensa. Os jornais de Niterói - e mesmo os do Rio - não têm como circular na cidade. Dois periódicos cariocas - O Dia e Meia Hora - chegaram a ser vendidos em carros do próprio jornal que estavam circulando na cidade até anteontem. Mas mesmo isso foi proibido pela prefeitura, sob o argumento de que a oferta de jornais daria uma justificativa a mais para as pessoas saírem às ruas.
Ora, a informação nesses tempos é tão importante quanto o pão. Se as pessoas precisam sair para buscar nas padarias e supermercados o alimento que as mantêm de pé, também necessitam, igualmente, da informação que pode salvar suas vidas. Cercear a livre circulação dos jornais é, além de um tiro no pé de quem deseja proteger os cidadãos, um atentado contra a própria liberdade de imprensa, pilar fundamental dos regimes democráticos. Ou será que Rodrigo se julga capaz de informar toda a população apenas com suas lives diárias no Facebook?
O próprio presidente Jair Bolsonaro, com todo desapreço que nutre pela imprensa independente e profissional, baixou decreto em que considera os veículos de comunicação - incluindo toda a sua cadeia de produção e logística - como um serviço essencial, que não pode ser interrompido. Ao continuar impedindo as bancas de jornais de cumprir sua missão de levar as publicações às mãos dos leitores, Rodrigo não só desconsidera o decreto presidencial como também agride a Constituição em sua clara garantia do livre exercício da liberdade de expressão.
Momentos excepcionais, como o que estamos vivendo exigem dos governantes ações também excepcionais e para isso existem instrumentos legais, como os decretos de calamidade, por exemplo, que flexibilizam os atos legais e rompem extraordinariamente algumas barreiras protetoras no exercício da administração pública. Não se pode, entretanto, em nome do desafio de salvar vidas, atropelar os princípios fundamentais que regem a vida democrática.
Do contrário corremos o risco de sobreviver ao coronavírus e sucumbir em seguida ao despotismo.
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